INFODEMIA

Prof. Dr. Fábio José Rauen
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da UNISUL

 

Em “Roteiros de Iniciação Científica”, meu livro de metodologia publicado em 2015 pela editora da Unisul, dediquei um capítulo inteiro para abordar o modo correto de se produzir ciência. Neste capítulo, dei especial ênfase aos aspectos que permitem avaliar se os conhecimentos obtidos da empreitada científica não são apenas verdadeiros materialmente, mas, sobretudo, válidos logicamente. Assumindo que essa dupla exigência é o que separa o conhecimento científico do conhecimento de senso comum, resolvi terminar o capítulo com um assunto quase ausente de livros dedicados à formação de futuros pesquisadores: os argumentos falaciosos. Mal sabia que essa questão passaria a ter tanta importância nesses tempos de “infodemia” ou pandemia de desinformação.

O objetivo da ciência é lidar com raciocínios corretos obtidos de evidências verdadeiras. Consequentemente, será falácia sempre que se produzir um raciocínio incorreto de evidências falsas; sempre que se produzir um raciocínio incorreto de evidências verdadeiras e, assim, cometer um erro formal que torna o argumento inválido; ou sempre que se produzir um raciocínio correto de evidências incorretas ou enganosas e, assim, cometer um erro material que torna o argumento falso.

Uma falácia é, portanto, um argumento inconsistente ou inválido em função de uma falha formal ou material. Uma falácia pode induzir ou convencer alguém a um erro de maneira acidental ou fraudulenta. No primeiro caso, ela é chamada de paralogismo; no segundo, ela é chamada de sofisma. É próprio de nossa humanidade cometer erros acidentais. Por vezes, nos confundimos ou tendemos a acreditar naquilo que queremos acreditar, mesmo que sejam falsos. Todavia, é muito sério quando produzimos ou acreditamos em argumentos elaborados de má-fé com a intenção de logro ou engano.

Infelizmente, em tempos de combate à pandemia de Sars-Cov-2, a ciência trava um novo combate contra um vírus muito mais antigo e muito mais resistente: a desinformação. Ilude-se quem acha que fake news são um fenômeno recente: que digam os cristãos incendiários de Roma, os judeus causadores da peste e todas as bruxas queimadas em fogueiras. Entretanto, o caráter pandêmico da atual “infodemia”, cujos efeitos psicossomáticos ainda estão por ser estudados, é assustador. Sofismas ardilosamente produzidos para atingir interesses econômicos, políticos e ideológicos, infectando humanos ao modo dos vírus, estão sendo cada vez mais turbinados pelas redes sociais. O único antídoto conhecido: educação qualificada.

Vejamos dois exemplos relacionados à Covid-19 para compreender o impacto dessa doença nas vidas das pessoas. Meu primeiro exemplo tem a ver com uma falácia de argumento de autoridade ou argumentum ad verecundiam, segundo a qual algo é verdade somente porque foi afirmado por uma autoridade ou pessoa famosa. Exatamente é esse o caso da “campanha publicitária” em favor da cloroquina. Trata-se de um exemplo de falácia de relevância porque a premissa não tem relação com a conclusão, ou seja, não segue do fato de um presidente defender certo medicamento que alguém deva usá-lo, como os estudos científicos amplamente publicados corroboram. E de nada adianta amenizar o sofisma, dizendo que o medicamento vale apenas para si. Nesse caso, a estratégia pode ser classificada como falácia da evidência anedótica, que consiste em fundamentar um argumento por meio de um exemplo particular. A conclusão, ainda assim, não segue da premissa; e a evidência, mesmo que anedótica, continua sendo a de uma autoridade (afinal, não estamos falando do primo da vizinha do amigo do meu compadre).

Meu segundo exemplo tem a ver com a falácia da falsa dicotomia ou falácia da bifurcação, que consiste em supor que uma alternativa possui limitado número de opções, quando há outras opções silenciadas. Em minhas aulas, argumento que em toda bifurcação, estamos diante de quatro alternativas. Considere o famoso raciocínio disjuntivo “Ou você é meu amigo, ou você é meu inimigo”. Independentemente de pensarmos que é sempre possível aumentar as alternativas, a disjunção é, em si mesma, uma falácia de falsa dicotomia. Sim, de fato, você pode ser meu amigo (e, desse modo, não é meu inimigo), ou pode ser meu inimigo (e, desse modo, não é meu amigo). Todavia, duas opções são silenciadas: a possibilidade de você ser meu amigo e ser meu inimigo ao mesmo tempo, e a possibilidade de não ser nem meu amigo, nem meu inimigo ao mesmo tempo.

Em tempos de pandemia, estamos sendo constrangidos a lidar com a falsa dicotomia entre distanciamento social e preservação de empregos. Se defendemos o distanciamento social, nos sentimos culpados pelas consequências econômicas; se defendemos a liberação do convívio social, nos sentimos culpados pelas mortes estupidamente evitáveis. Essa falsa dicotomia é duplamente maléfica. De um lado, ela gera sofrimento porque nos coloca num dilema impossível. De outro, ela nos cega para possibilidades de soluções criativas que poderiam viabilizar o distanciamento social e otimizar a preservação de empregos. Lamentavelmente, presos nessa falsa dicotomia, estamos nos encaminhando em direção a uma situação na qual, não estando suficientemente convictos, desnecessariamente perdemos empregos; não estando suficientemente distantes, contabilizamos mortos para além do admissível e por um tempo excessivamente extenso.

 

Você sabia?

Fábio José Rauen publicou pela editora da Unisul em 2015 o livro “Roteiros de Iniciação Científica”. O livro apresenta em 672 páginas todos os passos para a elaboração de uma investigação científica desde a concepção do projeto de pesquisa, passando pelas diferentes formas de coleta e análise de evidências, até a apresentação e a publicação.

 

Fique atento!

O Grupo de Pesquisa em Pragmática Cognitiva do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul tem uma linha de investigação dedicada à produção e à interpretação do texto acadêmico onde questões tratadas nessa matéria são estudadas. Conheça o Programa no endereço www.unisul.br/linguagem ou no e-mail ppgcl.sec@unisul.br.