sábado, 18 maio , 2024
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Léo Rosa de Andrade

Lula, Judiciário, fanáticos, ladrões, suspeição

Manifestações populares com intenção de interferir no Judiciário. Sou a favor. É um direito do povo. O Judiciário é um poder do Estado, deve saber o que as ruas pensam e levar isso em conta. Mas, bem… com as devidas ponderações.

Sentenças não se devem fundar nas apreciações flutuantes de multidões. Rancores de rua, crendices religiosas, opinião do “povo” (in)formada por auditórios de TV: não haveria Estado de Direito se isso sustentasse posições judiciais.
                             
A mitologia cristã registra o julgamento de Jesus. Pilatos, a expressão do “sistema”, Roma, tentou protegê-lo. O povo o condenou ao Crucifagium, libertando Barrabás, acoimado pelos cristãos de “ladrão”. Pilatos lavou as mãos.

Essa é a história dos vencedores, é o jeito de contar as coisas que interessa e interessou aos donos do “sistema”. Por milênio e meio o poder do cristianismo deu fim físico a quem a interpretasse ou descrevesse de outro modo.

Hoje já se pode dizer sem medo que Barrabás era um judeu que lutava contra a dominação romana, fustigando as forças invasoras de sua pátria, e que o povo talvez soubesse muito bem o que fazia votando por sua libertação.

Barrabás foi preso após atacar soldados romanos na cidade de Cafarnaum. Cristo respondeu a processo porque contrariou crenças judaicas, declarando-se ele mesmo filho de divindade. O mais é poder de escrever a História.

Até hoje os cristãos dizem que Barrabás foi a escolha errada. Agora, os norte-americanos escolheram Donald Trump. O “sistema mancomunado” defendia Hilary Clinton. Quem se considera lúcido insiste que Trump foi má escolha.

E Lula com isso? Nada, a não ser o fato de que o petista é o cidadão mais apontado em pesquisas de opinião pública como desejado para presidir o País, e ele será brevemente julgado em grau de recurso pelo TRF-4.

Ah!, existe também o fato de que se pretende “invadir Porto Alegre para pressionar o Judiciário” a não confirmar a sentença de primeiro grau que condenou Lula, do que decorrerá a condição jurídica de sua candidatura à Presidência.

Lula é o político mais apreciado pelos eleitores, quase um terço. Ao mesmo tempo é o mais recusado de todos os possíveis candidatos, quase metade dos votantes. É um caso de amor e ódio sob apreciação de três desembargadores.

Ainda bem. Nas relações de amor e ódio que afetam o Brasil, se Lula fosse julgado em praça pública, como sectários de sua grei pretendem, talvez o resultado afluísse a um Trump (ou Bolsonaro) ou Barrabás (que nunca foi ladrão).

O ideal é que tudo transcorresse nas normais formalidades do Estado Democrático de Direito. Contudo, avaliando as circunstâncias, o prefeito da capital gaúcha pede o Exército (força de guerra) para dar conta da ordem pública.

A Frente Brasil Popular (havida por “de esquerda”) arvora-se internúncio popular. O Movimento Brasil Livre (declarado “de direita”) há-se por arauto do povo. A apreensão do Exército é o choque entre as organizações divergentes.

A FBL arranja um “congresso do povo”, o MBL espera “mais engajamento”. Vale perquirir sobre a legitimidade (autoconferida) de uma e de outra parte. Ambas apelam à Constituição. A Carta atribui a tarefa de julgar ao Judiciário.

Confio no Judiciário tanto quanto confio em qualquer instituição brasileira. Há-se de suspeitar, metodicamente, dos membros das instituições, não do institucional. Mas, aí, para acusar alguém, só se houver suspeita concreta.

Como os altos tribunais têm descontentado a todos os portadores das bandeiras “correligionárias” dos destinos do Brasil, nisso estou tranquilo, o julgamento será técnico e o fundamento do acórdão será expresso, como manda a lei.

Sim, claro, não creio em neutralidade ideológica de ninguém, nem na minha, muito menos na de juízes de carreira, em geral com a mentalidade formatada pelo dogmatismo da tradição teórica e prática do Direito.

Mas era “só o que faltava” transferir fé jurídica para grupos fanáticos organizados em torno de fascistas de direita ou de ladrões sedizentes de esquerda. O voto declarado técnico do juiz é mais civilizado do que o grito da “nossa” rua.

Agora, especialmente aos petistas, cabe certa deferência ao Direito. Se, “Cristo me acuda”, não erro nas contas, há três presidentes, cinco secretários, e três tesoureiros do PT presos. É muita gente e muito dinheiro para alegar suspeição.

O povo poderia, mas não vai renovar os políticos

Declara-se desejo de renovação no mundo político. É possível; não é provável. A “política” não se vai renovar por mote próprio. Desejo significar: nenhum político instalado no poder renunciará à condição em que se encontra.

Um político com mandato, regra geral, detém parcela significativa de controle sobre a “máquina” partidária, e fora dessas instituições burocráticas nem mesmo há condições legais para que o “novo” político pleiteie votos e eleição.

Partidos políticos são ferramentas jurídico-políticas de mediação entre a Sociedade e o Estado, estando presentes em todas as democracias contemporâneas, apesar das insuficiências crescentes dessas instituições para gerir esses vínculos.

Não apreciamos, nem os Partidos, nem os políticos. Não obstante, “Brasileiro desconfia de políticos, mas vê eleição como saída para crise – Descrédito do eleitor brasileiro abre espaço para renovação, diz pesquisa da FGV-DAAP”.

Edito a matéria: “Considerando o pleito de 2018, têm intenção de apoiar um candidato novo fora da política tradicional, 29,8%; pretendem votar em branco ou nulo, 29,3%; votariam em candidato independentemente de partido, 16,1%.

O coordenador da pesquisa (O dilema brasileiro: entre a descrença no presente e a esperança no futuro), Marco Aurélio Ruediger, crê que a combinação entre descrédito e esperança poderá resultar em um processo de renovação eleitoral.

Entre os entrevistados, 83% não confiam no presidente da República; 79% desconfiam dos políticos eleitos; 78% não confiam nos partidos; 47% creem que o país estaria melhor sem legendas” (Gabriel Cariello/Marco Grillo, https://goo.gl/bRWHbx).

O nível agregado de confiança no mundo político desabou. Felizmente, da oitiva dos pesquisados dessume-se que as contrariedades poderiam ser sanadas no próximo pleito. Ou seja: a solução para a “crise brasileira” viria com as eleições.

Contudo, dadas as “regras do jogo” a “crise” perdurará, pois perdurarão os políticos: “De acordo com a proposta aprovada na reforma política, caberá à cúpula de cada partido definir como será a distribuição dos recursos do fundo eleitoral.

Líderes dos dez maiores partidos ouvidos pelo Estadão/Broadcast pretendem direcionar os recursos eleitorais em 2018 para campanhas de candidatos que já tenham mandato político.
Além disso, também devem priorizar o espaço da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV para caciques partidários e candidatos conhecidos em seus redutos” (Isadora Peron e Renan Truff, Estadão, 16dez17).

Quanto à “renovação”, igualmente, é improvável. As siglas que ocupam o poder permanecerão, se depender de propaganda. Terão, por ordem, mais tempo em rádio e TV: MDB, PT, PSDB, PP, PSB, PR, PTB, PRB, DEM, Outros, 1min24s.

Então, quanto às práticas, sendo as mesmas siglas e a mesma gente, persistirão: “A cúpula do MDB resolveu enquadrar os candidatos do partido em 2018: quem não defender o legado do governo Temer ficará sem apoio.

Para bom entendedor, isso significa que quem se fizer de desentendido vai ficar em último lugar na distribuição dos recursos do fundo eleitoral” (Carolina Bahia, DC, 19dez17. Essas práticas, por menos, contribuem para a crise.

Há “esperança” na Lava-Jato. Bem, “estudos sobre o impacto de escândalos de corrupção sobre a reeleição de deputados federais nas eleições anteriores a 2014 podem ser informativos sobre o que vai acontecer em 2018.

A taxa de reeleição média é de 70%. Envolver-se em escândalo reduz a probabilidade de reeleição, na média, em 18%. Esse efeito se anula quando o gasto do incumbente se aproxima de R$ 2 milhões, valor só atingido por 10% das candidaturas.

Em outras palavras, os custos reputacionais podem ser mitigados por gasto expressivo de campanha” (Marcus André Melo, FSP, 18dez17). No nosso “sistema”, dinheiro é uma lubrificação das relações entre candidato e eleitor.

Os políticos no poder têm meios de lubrificar as mãos “limpas” de boa parte do povo que despreza política e político. Votos, sem ilusão, serão comprados, mas, sem ilusão, votos serão vendidos. O povo compõe o sistema que declara odiar.

Minha apreensão: “bancada BBBs (boi, Bíblia, bala) já soma 347 dos 513 deputados e ‘revela a faceta ultraconservadora da sociedade escondida pela prosperidade e os avanços sociais dos anos 2000’” (Le Monde, FSP, 22dez17).

Condução coercitiva, Gilmar Mendes realizou a Constituição

Sobre as nomeadas conduções coercitivas, discute-se, juristas inclusive, mais o ministro Gilmar Mendes e menos o Código de Processo Penal e a Constituição da República. Não cabe controverter o gosto pelo ministro, coisa de foro pessoal, importa, isto sim, a Lei, e mais ainda o cumprimento da Lei.

Em boa parte da imprensa, a conformação da conduta de certas autoridades ao CPP e à Constituição determinada pelo ministro Mendes é “denunciada” como conspiratória e desfavorável ao combate à corrupção. Certo espírito justiceiro desconsidera fáceis os estatutos de legalidade e pede atalhos temerários de procedimento.

Exemplo: “Tragédia brasileira – O ano de 2017 ficará marcado pelo esvaziamento forçado da Lava-Jato e o ministro do STF Gilmar Mendes tem papel de destaque nesta operação abafa. […] Ele concedeu liminar proibindo a condução coercitiva em todo o país” (Carolina Bahia, DC, 20dez17).

No Ministério Público, o mesmo reclame: “O procurador Deltan Dallagnol disse que o ministro ‘mina as bases da Lava-Jato e pavimenta o caminho para a anulação de provas’. Reclamou especialmente da restrição às conduções coercitivas: ‘Gilmar impôs a todas as investigações do país sua visão como a única admissível. Nas entrelinhas, chama milhares de juízes, delegados e promotores de abusadores’.

Qual o fundamento de Gilmar? “As conduções coercitivas para interrogatório têm se disseminado, especialmente no curso da investigação criminal. Representam uma restrição importante ao direito individual, alegadamente fundada no interesse da investigação criminal […] No curso do inquérito, não há regra que determine a submissão ao interrogatório. Pelo contrário, como já afirmado consagra-se ao investigado o direito ao silêncio.

A condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer […] Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal” (FSP, 20dez17).

Qual o fundamento do fundamento do ministro? Que diz a Lei? Art. 218 do CPP: “A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.”

Mais especificamente, Art. 260 do CPP: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Pelas normas em vigor, a aplicação da condução coercitiva é autorizada ao ofendido, à testemunha, ao acusado e ao perito que se recusem a comparecer em juízo. Contudo, na letra da Lei consta: se testemunha, “regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado”; se acusado: “não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado”.

Ora, a condução coercitiva é uma modalidade de prisão, ainda que cautelar e de breve duração, mas é uma constrição da liberdade. Cabe, contudo, mas a oportunidade e condições de efetuá-la não estão abertas ao talante, nem do delegado, nem do promotor, nem do juiz, mais ainda porque o comando legal não permite margem de interpretação: a condução forçada só tem cabimento se o intimado para um ato de inquérito ou processo não comparecer e não fornecer justificativa razoável para não fazê-lo.S obre as nomeadas conduções coercitivas, discute-se, juristas inclusive, mais o ministro Gilmar Mendes e menos o Código de Processo Penal e a Constituição da República. Não cabe controverter o gosto pelo ministro, coisa de foro pessoal, importa, isto sim, a Lei, e mais ainda o cumprimento da Lei.

Em boa parte da imprensa, a conformação da conduta de certas autoridades ao CPP e à Constituição determinada pelo ministro Mendes é “denunciada” como conspiratória e desfavorável ao combate à corrupção. Certo espírito justiceiro desconsidera fáceis os estatutos de legalidade e pede atalhos temerários de procedimento.

Exemplo: “Tragédia brasileira – O ano de 2017 ficará marcado pelo esvaziamento forçado da Lava-Jato e o ministro do STF Gilmar Mendes tem papel de destaque nesta operação abafa. […] Ele concedeu liminar proibindo a condução coercitiva em todo o país” (Carolina Bahia, DC, 20dez17).

No Ministério Público, o mesmo reclame: “O procurador Deltan Dallagnol disse que o ministro ‘mina as bases da Lava-Jato e pavimenta o caminho para a anulação de provas’. Reclamou especialmente da restrição às conduções coercitivas: ‘Gilmar impôs a todas as investigações do país sua visão como a única admissível. Nas entrelinhas, chama milhares de juízes, delegados e promotores de abusadores’.

Qual o fundamento de Gilmar? “As conduções coercitivas para interrogatório têm se disseminado, especialmente no curso da investigação criminal. Representam uma restrição importante ao direito individual, alegadamente fundada no interesse da investigação criminal […] No curso do inquérito, não há regra que determine a submissão ao interrogatório. Pelo contrário, como já afirmado consagra-se ao investigado o direito ao silêncio.

A condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer […] Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal” (FSP, 20dez17).

Qual o fundamento do fundamento do ministro? Que diz a Lei? Art. 218 do CPP: “A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.”

Mais especificamente, Art. 260 do CPP: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Pelas normas em vigor, a aplicação da condução coercitiva é autorizada ao ofendido, à testemunha, ao acusado e ao perito que se recusem a comparecer em juízo. Contudo, na letra da Lei consta: se testemunha, “regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado”; se acusado: “não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado”.

Ora, a condução coercitiva é uma modalidade de prisão, ainda que cautelar e de breve duração, mas é uma constrição da liberdade. Cabe, contudo, mas a oportunidade e condições de efetuá-la não estão abertas ao talante, nem do delegado, nem do promotor, nem do juiz, mais ainda porque o comando legal não permite margem de interpretação: a condução forçada só tem cabimento se o intimado para um ato de inquérito ou processo não comparecer e não fornecer justificativa razoável para não fazê-lo.

A condição civilizatória trazida pelo Estado de Direito estabelece que o indivíduo possa ser chamado diante da autoridade do Estado, contudo, por intimação prévia, com agendamento de dia, hora, local e aviso de que pode fazer-se acompanhar por advogado. O elemento surpresa se atende aos interesses investigatórios em si, desarranja o pleno direito de defesa, fundamental para a vida democrática.

Ademais, seja o investigado, seja o acusado, tendo em vista que a ninguém se pode obrigar a produzir prova contra si, pode permanecer em silêncio diante de qualquer autoridade. Assim, se não se pode obrigar a falar, muito menos se pode dar sentido de justiça à condução compelida de alguém que tem o direito a quedar-se silente, conforme Art. 5, inc. LXIII da CF.

A legislação de Drácon perdurou até os tempos de Sólon. Atenas, em termos de Direito, viveu melhor com a temperança das leis “solônicas”. Ansiamo-nos por procedimentos draconianos, devemos pedir outra estrutura legal, mas se o fizermos estaremos em franco retrocesso para o medieval.
Essa polêmica entre leis violentas e procedimentos legais garantistas vem de tempos muito antigos e se assentou bem-sucedida em nossa Constituição. Eu gostaria que cada corrupto recebesse a devida condenação, mas defendo que cada cidadão julgado o seja menos pelo gosto dos punitivistas e mais pelos marcos constitucional.

A condição civilizatória trazida pelo Estado de Direito estabelece que o indivíduo possa ser chamado diante da autoridade do Estado, contudo, por intimação prévia, com agendamento de dia, hora, local e aviso de que pode fazer-se acompanhar por advogado. O elemento surpresa se atende aos interesses investigatórios em si, desarranja o pleno direito de defesa, fundamental para a vida democrática.

Ademais, seja o investigado, seja o acusado, tendo em vista que a ninguém se pode obrigar a produzir prova contra si, pode permanecer em silêncio diante de qualquer autoridade. Assim, se não se pode obrigar a falar, muito menos se pode dar sentido de justiça à condução compelida de alguém que tem o direito a quedar-se silente, conforme Art. 5, inc. LXIII da CF.

A legislação de Drácon perdurou até os tempos de Sólon. Atenas, em termos de Direito, viveu melhor com a temperança das leis “solônicas”. Ansiamo-nos por procedimentos draconianos, devemos pedir outra estrutura legal, mas se o fizermos estaremos em franco retrocesso para o medieval.

Essa polêmica entre leis violentas e procedimentos legais garantistas vem de tempos muito antigos e se assentou bem-sucedida em nossa Constituição. Eu gostaria que cada corrupto recebesse a devida condenação, mas defendo que cada cidadão julgado o seja menos pelo gosto dos punitivistas e mais pelos marcos constitucional.

Leticia Sabatella, alinhamentos ideológicos, presunções, ódios

“Voltando ao Trump…” – “Ele cria muita divisão na sociedade. Acho que ele está promovendo a ideia do ‘nós contra eles’, que era o discurso de Adolf Hitler. Não acho que Trump é um Hitler, mas a mesma ideia existe nos dois discursos.

É isso que assusta. Quando você começa a se referir a outra cultura como ‘eles’, é como se valessem menos. Passam a ser tratados não como pessoas, mas como uma ideologia ruim, o mal” (Entrevista de Evan Jean Lawrence a Isto é 12jun17).

Esse discurso autoritário do mundo acentuadamente ideologizado durante o século 20 alcança o Brasil no século 21, para pouco bem e para muito mal. Se nos posicionamos politicamente, lamentavelmente o fazemos com discursos de ódio.

“Nós precisamos de vocês. Está em jogo tudo o que fizemos. Não somos iguais a eles” (Dilma Rousseff, eleita presidenta, em nov10). A “concepção” demarcatória que Lula recorrentemente usou é de João Santana, marqueteiro do PT.

Este marco divisório radicaliza o “Nunca antes nesse país”, ou “Os outros são farinha do mesmo saco”. São falas excludentes. O suporte intelectual dessas raias é oferecido por Marilena Chauí: “Eu odeio a classe média.” (https://goo.gl/zEUJ1d).
 
“A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista; é uma abominação ética, porque ela é violenta; é uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante.” A fala destila rancor ao outro, embora refira uma ideologia de “lugar social”.

O charme artístico vem de Leticia Sabatella, injuriada por direitistas: “O que eu senti daquelas pessoas foi pena. Porque eu vi, assim, nossa… que abismo. Que falta de empatia, de conexão com o que é verdade, inclusive” (FSP, 03dez17).

A atriz arremata: “Eles estão acreditando numa lavagem cerebral”. Eu diria: “Eles” só acreditam noutra coisa; “eles” são coxinhas; “eles” não são mortadelas. “Eles” pensam diversamente e têm esse direito. Letícia, desconfia das “verdades”.

As marcas presunçosas da posse da razão geram ódio. Geramos um especialista nos piores ódios: Jair Bolsonaro propõe abertamente violência institucional, tortura, morte. Propõe o retorno da Ditadura. Quer matar FHC (https://goo.gl/dR9zuo).
 
Letícia, esquerda tem outra tarefa: a persuasão. A direita classe média brasileira vive a nostalgia de um lugar perdido, lugar que nunca existiu. A esquerda, contudo, responde com um “discurso de autoridade” suposto por si mesma superior.

Pomo-nos entre autoritarismos: o retorno à Ditadura e sua brutalidade que não admite contestação (fala do general Geisel), ou a “certeza” de fins com quaisquer meios que a esquerda oferece, sem discussão, como salvadora do futuro.

Nas democracias estabelecidas, as partes do processo sabem que vivem um presente imperfeito, que nunca tiveram o passado ao qual querem retorno (a direita), que não construirão o futuro que pressupõem e que prometem (a esquerda).

E haverá conflitos, necessários ao engendramento da vida democrática. Ou então será tirania. Na democracia, todos terão argumentos, ninguém terá razão. A democracia equilibra-se sobre um consenso possível e sempre provisório.

A convivência pacífica de uma nação é suportada unicamente em consensualidades obtidas por meios persuasivos. A vida democrática é mais do que a vitória eleitoral. A maioria numérica é insuficiente para legitimar gestos de governo.

Então, para quem almeja as generosidades da vida em comum, não tem cabimento o “nós e eles”, não são pertinentes as declarações rancorosas. Não cabe dizer que o pensamento do outro adveio de “lavagem cerebral”.

Cara Leticia, a gritaria toda com que pessoas pouco lhanas te insultaram é mesmo uma coxinhice. Mas, atenção, o Brasil não quer mortadelice. Não podemos nos reduzir a coxinhas versus mortadelas. Somos mais e melhores do que isso.

Vê, Leticia, os brasileiros confiaram na esquerda, mas a esquerda se consorciou com a pior direita; vê que a esquerda e a direita se mancomunaram para roubar. Governo de ladrões: acumpliciaram-se, roubaram, depois brigaram.
 
Estamos numa quadra interessante: fazendo política, declaramos nojo aos políticos; desejando honestidade, desculpamos os “nossos” bandidos; pedindo democracia, tratamos o adversário como inimigo e queremos silenciá-lo. Não dá.

Temos que nos persuadir, formar consensos de convivência. Deve existir direita não violenta, esquerda sem desdém. O povo deseja um Brasil melhor. À gente toda, Leticia, tem-se que ouvir, sem exclusão. Ah!, logo haverá eleições.

Perda de carteiras, medida de corrupção

Minha carteira, eu a perdi em três oportunidades. Nunca me dei conta da perda; antes da aflição, sempre fui ‘avisado’. Não obstante prometer-me cuidados, sobretudo pelo que me aborreceria o refazer documentos, sou reincidente.

A primeira foi em Cuba. Bateram na porta do quarto. Um casal que falava uma língua que não identifiquei e não entendia nenhuma das que eu me esforçava em falar, para minha surpresa, apresentou-se com ela e me a devolveu.

A segunda vez foi em Washington. Eu lia no saguão de um hotel e uma moça me observava com atenção. Ousei, fui a ela. Ganhei um sorriso condescendente com a meu atrevimento e a notícia: “Estou com a sua carteira”. Era brasileira.

A terceira foi em Florianópolis. Antes de perceber que não a detinha, meu telefone registrou chamadas, minha filha recebeu a notícia, minha mulher foi avisada. Quem a encontrou cuidou atenciosamente de informar que a encontrara.

Perda de carteiras, aliás, confere corrupção. “O que poderia medir a honestidade de uma cidade? Para a Reader’sDigest, um teste baseado em ‘devolução’ de carteiras. Em 16 metrópoles, repórteres deixaram cair no chão 12 carteiras.

Elas continham 50 dólares e telefone para contato. Na Finlândia serestituíram 11; no Brasil, 4. Em Portugal, uma foi devolvida; boa ação de casal holandês. Madri, duas. Mumbai, 9, à frente de Nova York e de cidades europeias”.

A autora da matéria (https://goo.gl/T8AGRZ) que edito, Paloma Savedra, entende que o teste revelou que a honestidade não está atrelada a poder econômico, dado que Mumbai, Índia, é pobre. Eu não me apressaria nessa correlação.

Catherine Haughney, editora da RD: “A idade não é um fator de previsibilidade; homens e mulheres foram imprevisíveis; o poder econômico relativo pareceu não ser garantia de honestidade” (Luís Santos, https://goo.gl/xFZ2rQ).

Teste diferente, mas que também lança mão de carteiras ‘perdidas’, foi realizado pela ABC News em Miami. Atores ‘encontraram’ e entregaram 31 carteiras com dinheiro e identidade para 31 policiais. Nove subtraíram o dinheiro e foram punidos.

A ABC News replicou, 30 anos depois, o teste de integridade em Los Angeles e em Nova York. Um total de 20 carteiras foi entregue a policiais de cada cidade. Todas as 40 foram encaminhadas aos proprietários sem falta de dinheiro.

Não está claro se os policiais se tornaram mais éticos, ou se agiriam com correção por suspeitarem de que estavam sendo testados. De toda sorte, parece inegável o efeito dissuasivo de práticas corruptas (Steve Rothlein, https://goo.gl/P1FEtu).

Tais testes inspiraram as 10 medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal (https://goo.gl/ekXYZF). Na parte relativa à “Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação”, lê-se (editado):

“Testes de integridade, isto é, a ‘simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública’. O pressuposto desses testes não é a desconfiança em relação aos agentes públicos, mas sim a percepção de que todo agente público tem o dever de transparência e accountability, sendo natural o exame de sua atividade”.

O MPF argumenta apropriadamente que a realização desses testes é incentivada pela Transparência Internacional e pela ONU, o que é verdade. Erra, contudo, quando propõe atrelar a si a sua realização por qualquer autoridade:

A aplicação dos “testes pode ser feita por órgãos correicionais e cercada de cautelas, incluindo a criação de uma tentação comedida ao servidor, a gravação audiovisual do teste e a comunicação prévia de sua realização ao MP […]”.

Nisso vejo empáfia do MPF, uma presunção de honestidade que seria exclusiva dos membros dessa instituição. Tais verificações podem ser feitas por qualquer autoridade e, a meu ver, precipuamente por entidades não governamentais.

É assim que funciona no mundo. Esse funcionamento inspirou o MP. Tais testes, ademais, podem e devem ser aplicáveis a quem quer que sirva ao Estado, inclusive aos membros do MP, por autoridades da sua hierarquia, ou não.

A Reader’s Digest ‘perdeu’ 192 carteiras; 90 foram devolvidas. A revista canadense avaliou: “em todo o lado há pessoas honestas e desonestas”, mas é “verdadeiramente inspirador ver que há muita gente honesta no mundo”.

Não há honestidade ou desonestidade em uma instituição, mas nas pessoas que nela trabalham. Ninguém se torna corrupto por ser político, mas muitos corruptos são eleitos políticos. Concurso ou voto não fazem culpados ou inocentes.

Ninguém está à parte do bem ou do mal por efeito de cargo. Muitos corruptos ocupam cargos no Brasil, nos Três Poderes. A fiscalização adequada é a de todos sobre todos, sobretudo da Sociedade sobre a burocracia estatal.

Não fiz teste. Perdi 3 vezes minha carteira, devolvida sempre com correção, 2 vezes por pessoas brasileiras. Não é tanto, mas estou orgulhoso. Restei – ou desejo restar – convencido de que a Sociedade dará jeito nela mesma. E no Estado.

Nossos ódios, a não formação de consensos: não há política sem política

Pesquisas de opinião pública nos trazem “fotografias” da nossa mentalidade, ou seja, de nós mesmos. Ainda que nos sintamos um caso à parte, somos estatística. Nossas concepções da vida pública são capturáveis e quantificáveis.

Dados sempre podem ser manipulados, e não faltam manipulações escandalosas já denunciadas. De toda sorte, quem acompanha a opinião geral que se formou sobre a política brasileira sabe que há dados que se vêm confirmando.

Cresce descrença na política tradicional – Ideia Big Data, (https://goo.gl/X9wy7k). “Gostariam de ver cidadãos comuns como candidatos em 2018: 79%; meu voto é na pessoa e não me importo com partido político: 77% (no Nordeste, 90%)”.

A população considera, parece, que o político tem um vício de origem, como se adviesse de um lugar social à parte, como se não fosse eleito. Também, o povo valoriza a relação personalizada, desprezando a organização partidária.

“Na minha vida cotidiana, não me importa que uma política pública seja de direita ou de esquerda, o importante é que torne a minha vida melhor: 72%”. Na organização da Sociedade, desimporta o conceitual. Vale a solução do “meu” problema.

Permanecemos com a mais marcante das nossas heranças políticas: o coronelismo. Não se discutem ideias ou formas de organização pública; vale a relação com a personalidade que me atende; eu quero resolver as minhas questões.

Jürgen Habermas, Teoria da Ação Comunicativa: a Sociedade deve criar pactos de interesse geral por consensos, os quais são formados a partir da possibilidade de igual participação argumentativa de todos os interessados.

A formação de consensos é a base da Democracia. Seja, não basta a eleição de representantes de uma maioria, mas uma legitimação geral de políticas públicas que resultem minimante consensuais, ou aceitas como de interesse geral.

O caminho é a persuasão. O político forma consensos com recursos persuasivos. Habermas diz racionalização: de forma pública, apresentação de ideias e sustentação de proposições com o intuito de legitimar por formação de consensos.

Ora, dificilmente se formarão concepções de interesse público geral em torno de políticos “comuns”, de personalismos, de interesses particulares. É improvável que se organize a administração pública à parte de meios institucionais.

Sem a construção coletiva de conceitos assumidos e articulados por siglas partidárias institucionalizadas não há consensos. Então, se governar é consubstanciar conceitos e realizar propostas anuídas, ideias e instituições são necessárias.

Democracia pede sujeito democrático, sujeito disposto à participação nos recursos inventados para se viver em democracia, quer dizer, nos partidos. Participação é mais do que crítica ressentida, do que discurso para o outro.

Participação é um discurso que me interpela a mim mesmo sobre o inscrever-me nas instâncias transformadoras de ideias em atos. Não há discurso “pra minha turma” que transporte uma ideia à legitimação coletiva. Não há política sem política.

A busca da concordância cívica não advirá só dos partidos políticos, evidentemente. Os tantos meios de interlocução, todavia, não são licença para indivíduos sem apetência política pensarem que se fazem substitutos do político.

As redes sociais são talvez o sistema de comunicação jamais imaginado por Habermas. São a contribuição mais eficiente que as modernas tecnologias de relações pessoais poderiam trazer para o fomento do diálogo nacional.

Sua ocupação, contudo, não é dialógica. As falas não contêm interlocução. As redes sociais foram ocupadas por discursos rancorosos que não contemplam interesses gerais. Sobre elas, se Habermas as conhecesse, talvez pensasse:

“São lugar de transcendência, nela falantes e ouvintes se encontram; é onde podem levantar, uns em relação aos outros, a pretensão de que suas exteriorizações condizem com o mundo objetivo, social ou subjetivo”.

Seria onde poderiam “criticar ou afirmar pretensões de validade, resolver dissenso e obter consenso” (editado de Habermas, Jürgen, Teoria do agir comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista, Martins Fontes).

Redes sociais, enfim, são meio de fazer política, não substituem a política. Ainda bem, seus atores, de tanto ódio que destilam, não ocupam o lugar dos políticos. Mesmo que os políticos prestem pouco, são menos odientos que os internautas.

As pesquisas nos informam sobre nós: políticos não nos importam. Não se trata de substituir os imprestáveis. A política mesma não nos interessa. Cultivamos rancores, desprezamos ideias. Não conceituamos, cuidamos de nos insultar.

O coronelismo é mesmo a nossa matriz política não vencida: somos “nós contra eles”, danem-se os partidos, votamos em pessoas, valem interesses pessoais. Argumento, formação de consenso, essas coisas não habitam a nossa imaginação.

Lugar de fala, discursos em circulação, controle do pensamento

Omundo produz as ideias? Sou materialista, alinho-me a quem acredita que a realidade material do mundo produz as ideias, e, então, a consciência do próprio mundo. O mundo me fornece as ideias para pensar o mundo.

Pensa-se sobre um tempo concreto e um lugar concreto com as ideias circulantes num tempo concreto e num lugar concreto. As ideias que me alcançam na relação com minha existência concreta produzem a minha consciência.

Difícil escapar disso. Seja: sou produção ideológica, então, não sou “dono” do meu pensamento, mas o meu pensamento é “dono” de mim. E o que penso é o que circula como pensamento dominante no tempo e no lugar em que vivo.

Ideias são materializáveis e apropriáveis como qualquer bem material. Significa dizer: as ideias circulantes não são aleatórias, desprendidas de sistemas de poder, advindas de geração espontânea. Ideias são expressão de interesses.

Ideias são politicamente sistemas de controle, de formação de opinião pública, de tendências de consumo. As ideias, ademais, constituem a minha subjetividade, afetam meus prazeres, minhas tristezas, meus valores, minha dignidade.

Ideias constituem as relações de poder. Quem cuida disso? Quem domina lugares de fala põe discursos em circulação e controla pensamentos. O mais acachapante e perduradouro sistema de produção ideológica foi o catolicismo.

Por 1500 anos os católicos produziram o discurso do mundo, o exclusivo discurso válido circulante na Tradição Ocidental. Uma formulação conceitual, moral, estética. Um pensamento único administrado em todo o tempo e lugar.

Acreditava-se num deus pai severo. Prevalecia o homem branco. A família centrada no patriarca alicerçava a Sociedade, que era hierarquizada e imobilizada. Valia a nobreza e o clero; mais nada ou ninguém tinha algum valor.

Do modo de pensar católico se hauriam os costumes, o Direito, a música, o sentido do dia. O morrer e o viver eram coisa atinente ao divino. Fodia-se do jeito e com a finalidade que os padres dissessem que seu deus disse.

Em cada vila o templo católico acolhia a totalidade dos habitantes. Cada púlpito era o lugar de fala desse sistema de poder; ali se reproduzia o discurso dominante; a fala que reproduzia o discurso cristão se assentava sobre de cada qual.

Nos fins do século 18, o discurso capitalista ganha mais espaço. Indivíduos obtêm valor, dizem discursos, produzem conhecimento. A lógica divina tem seu espaço disputado pela lógica produtora do lucro e do que produz lucro.

A ciência torna-se negócio, corpos femininos ganham o sistema de produção, negros são desatrelados da escravidão. A ética mundana das novas circunstâncias afirma-se e disputa prestígio. Outros falantes, outras falas. Outras oportunidades.

A contemplação da obra do “senhor” é relativizada. O mundo não é dado, é História. É possível construir uma Sociedade mais igualitária. Nos tornaremos o que nos fizermos ser. Essa compreensão nova está sendo haurida da velha.

Os beneficiários da velha compreensão do mundo reagem. O reacionarista quer o mundo herdado. A mentalidade arejada deseja novos tempos: diversidade de atores, disputa por lugares de fala, por falas, por efeitos do falado.

Fascistas de direita interditam falas liberais. Fascistas de esquerda nomeiam fascistas os que não se alinham aos seus. Fascistas contrapostos insultam-se reciprocamente de fascistas. É o raro caso em que ambos os fascismos têm razão.

Homens temperados em religiosidades não suportam outro gênero que não o seu; tornam-se agressivos, ameaçadores. Brancos que sempre foram referência das coisas ainda se supõem capazes de ensinar a negros os modos de existir.

Os controladores das instituições afetivas, das famílias, da reprodução, dos modos de amar, de gozar, de conviver insistem que caminhamos para a degradação. Seus valores lhes escapam. Querem o retorno das hierarquias patriarcais.

A sociedade das mídias sociais está violenta. Há nisso uma dimensão muito feia: a estética da baixaria. Há uma grandeza, porém, na coisa: uma insubmissão. Ninguém está mais disposto a simplesmente obedecer a ninguém.

Para nos livrarmos da dominação, talvez até a grosseria vá bem. Para vivermos em uma Sociedade de mentalidade aberta, a descortesia não contribui. Para avançarmos, temos que legitimar posições. Temos que persuadir pessoas.

Valem os argumentos, as oitivas, as contraposições. Vale abrir os lugares de fala e pôr discursos em circulação. Não vale interditar ideias. Quem confisca pensamento pratica fascismo, ainda que, alienadamente, tenha-se por coberto de razão.

Masp, história da sexualidade, a repressão dos reprimidos

Nada mais no humano é precisamente primitivo. Somos organismo em evolução, sempre, e contemos cultura. A cultura, que, ademais, também evolui, nos constitui, delimita e amplifica possibilidades talvez tanto quanto a genética.

Sem cultura a nossa condição genética não nos traria tão longe. Aliás, essa afirmação é desnecessária, afinal, a nossa condição genética contempla a condição de cultura, e a cultura produzida ou assimilada “mexeu” e “mexe” na genética.

Em pelo menos duas coisas, contudo, ainda que também referentemente a elas tenhamos nos posto sob produções e demarcações culturais, não nos superamos muito. Comida e sexo perduram condição de sobrevivência.

Na selva comer era abocanhar e foder era copular. Eram coisas mais toscas, sem sentidos além do biológico, cometidas quando e onde o instinto pedisse; vontade e ato consubstanciavam, tirante obstáculo físico, coisa única.

A cultura, contudo, reservou destinos diferentes para uma e outra coisa. Comer foi convertido em evento de sociabilização: amigos são convidados, negócios são realizados, namoros são iniciados, comemorações são realizadas.

Há casas especializadas no comer: os pratos são apurados, a comida é servida em mesas bem preparadas por pessoas solícitas, bebidas finas de acompanhamento, toalhas sofisticadas, guardanapos, talheres apropriados.

O comer é coisa levada para o lado público da vida. Não importa se os comensais se passarão do necessário, se beberão demasiado, se conversarão aos gritos. Comer é um evento social interativo em que cabem até estranhos.

Já o sexo, no geral do comportamento adotado pelas pessoas na Tradição Ocidental, tomou rumo completamente diverso. É prática dirigida para o reservado, controlado e reprimido. Ainda que surja alguma abertura, sexo é coisa fechada.

Sobre os corpos foram traçadas linhas de uma geografia interditada. Na Tradição que nos alcança e que guardamos não se devem ver ou tocar partes havidas por pudendas. Árabes e judeus acrescentam bem mais pudicícia.

A “coisa” mais controlada da História desenvolvida sob a ideologia semita é a genitália feminina. As leis, as famílias, os maridos. A pauta dos “bons costumes” é um rol de recomendação fiscalizada de recato exigido à mulher.

Há avanços significativos a serem anotados, mas na sociedade brasileira ainda resta uma compostura formatada para o estar como feminino no mundo muito mais cobrada e rígida do que as regras de etiqueta do masculino.

É tal o valor subjacente de controle de corpos, que muitas conquistas feministas não se consubstanciaram em liberdade de agir. Antes, muitas mulheres, empolgadas de poder, repetem costumes patriarcais que criticam.

Há controle dos corpos, de seus afetos, de seus movimentos. Reciprocamente, homens e mulheres acasalados se fiscalizam. Sim, a Sociedade é mais tolerante com os homens, mas as mulheres exercem todo o controle que podem.

Mesmo o advento da internet, que possibilitou muito mais contatos entre pessoas e prática remota de sexo, não mudou a forma. Talvez até se tenham acrescentado reservas, como o anteparo da distância e certo anonimato.

Mas essas são circunstâncias da vida privada. Recentemente, contudo, o puritanismo brasileiro articulou-se e se exalta para censurar a circulação do tema sexo nos espaços públicos, sobremaneira nos educacionais e de cultura.

Há quem suspeite que tal agenda conservadora seja manobra diversionista. Seria a inspiração de um pânico moral para distrair a Sociedade de problemas estruturais, como nosso cotidiano de desigualdade, injustiça e violência.

Não creio. A direita é isso mesmo, ela pensa assim. Sexo, para conservadores religiosos, não é solução, não é direito; é problema, é a “dissolução da família, da Pátria, dos alicerces da tradição moral cristã”.

Acontece, ademais, que essa reação às exposições em museus e mesmo a cenas de novela não é a voz de cúpula isolada. Isso cala fundo em nossas crenças, tem reverberação, estrutura discursos eleitorais. Isso dá voto e poder real.

A Declaração Universal do Direitos Humanos prevê que o direito a viver a sexualidade é tão fundamental e universal quanto o direito à vida. O Brasil firmou a Declaração. Estamos aquém dessa conquista democrática, todavia.

A vida sexual é uma dignidade, um princípio fundamental que pede pluralidade e que deve ser laico. O Estado de Direito não pode ser contido dentro de fés. Mas os religiosos têm conseguido acuar o republicanismo laico.

História da Sexualidade, MASP; desço ao metrô. Após certa lotação, mulheres na fila da plataforma desistem de embarcar no vagão. Questiono-as. Explicam: “Com dado volume de pessoas, subir significa sermos acochadas”.

Repressões sexuais transbordam de algum modo. O assunto sexo não circula, está sob coibição. Sobram poucos saberes sexuais e práticas acanhadas, ruins. Penso agora: as mulheres, os abusos que aturam no transporte público.

Multidões estreitadas em pobreza. Muita gente fora dos prazeres da vida. Sexo cingido e abusivo: ato de biologia, não afeto. Igualdade social, questão política fundamental; a relação entre sexo, bitola intelectual estreita e religião, também.

O que te mantém nos abusos dessa relação?

Pretendo-me feminista. Algumas feministas denegam-me a condição. Na “categoria” de homem, eu não estaria no “lugar de fala”. Por não viver as condições biológicas e históricas de uma mulher, eu não poderia defender o feminismo.

Discordo. Não carece de estar na condição biológica de um sexopara considerar as condições históricas que o delimitam. É suficiente instruir-se em um bom livro de História ou ler alguma escritura religiosa. Basta observar o derredor.

Faço-me feminista, seja porque persiste um injusto civilizatório dos homens para com as mulheres, seja porque me é desconfortável carregar o ônus de herdar o bônus que os homens se concederam na repartição dos “papéis” de gênero.

É-me inconveniente ser beneficiário de vantagens indevidas. Sou igual, e assim me declaro porque assim me reconheço, não porque tenha a petulância de me supor concedente de condições de igualdade entre homens e mulheres.

Em questões de gênero, não se conferem direitos, já mesmo porque não se deve fazê-lo, já mesmo porque não se pode fazê-lo. Nesse tema, o imperativo moral interpelante de todo homem politizado é o de reconhecer direitos e lutar por eles.

Não é plausível, nessa questão mais de humanidade do que de gênero, exclusividade de “lugar de fala” a quem quer que seja. Aliás, em tudo quanto é ponto de construção libertária da humanidade, ninguém pode privatizar “lugar de fala”.

Há contudo uma posição a ser respeitada: a de protagonista. A causa é de todos, mas tanto a refrega da luta quanto o seu resultado têm machucado mais as mulheres do que os homens. Então, o comando dos acontecimentos é feminino.

Mas posso bem levantar questões. E há uma que me é particularmente aflitiva: a permanência voluntária de mulheres em companhias abusivas. O tempo médio de detença de mulheres em situação de violência é de dez anos.

Muitas mulheres, talvez a maioria, é certo, submetem-se a tal condição porque estão involuntariamente presas em uma armadilha. Inúmeras mulheres encontram-se, à sua revelia, em estado de vulnerabilidade que verdadeiramente aprisiona.

Um tanto significativo delas, contudo, não está submetida a estado terminantemente cerceador. Quero dizer: muitas mulheres mantêm-se por ação voluntária, não por meios forçosos de qualquer natureza, em relacionamentos agressivos.

O que fazem lá, nessa conjuntura de violência professada, essas mulheres? Tenho levado essa indagação a muitos lugares. Ao dirigir minha dúvida a Alice Bianchini, ela me redarguiu com provocação: “O que lá fazem os homens”.

De fato, é uma relação. Homem e mulher estão nela. Então, ocorre-me: os homens estão onde sempre estiveram. Sempre dispuseram dos corpos femininos por amparo costumeiro e legal; perderam o da lei, mantêm o dos costumes.

Mas, aí, recobro o objeto da minha indagação. Questiono a permanência voluntária de mulheres independentes em situação de violência. Pessoas enlaçadas em situação fragilizada não têm opção, não são voluntárias da própria posição.

Parece-me que nessas relações há mais que controlador e controlada. Quero crer que a situação de violência é, a violência mesma, causa e efeito da perduração da relação. Convivências de homens e de mulheres gays repetem o padrão.

Não refiro rusgas com começo, meio e fim; isso todos conhecemos. Mesmo agressões podem escapar do controle; se não são justificáveis, de toda forma acontecem. Aludo à vida em naturalização do rancor, em rotina de ódio.

Há insultos. Os dizeres insultuosos rosnados até poderiam ser capitulados nos crimes contra a honra tipificados no Código Penal. Depois, o casal, amuado silencia. Logo os costumes remetem o par para o mesmo quarto, para mesma cama.

A parelha, de que gênero seja, amanhece dando curso normal à sucessão dos seus dias. Dá seguimento cotidiano à mesma vida. Alice tem razão: é de se perguntar o que faz nisso um homem. Eu tenho razão: o que faz nisso uma mulher?

Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Certo, a psicanálise assim o atesta. A neurociência testifica que é assim. Há gozo na coisa. Os labirintos do cérebro nos conduzem. Há operações em nós que não controlamos.

Não obstante: Jesus cobraria o alvedrio cristão, ou não haveria pecado; Sartre inquire da responsabilidade com a existência, ou não há humanidade. Do meu “lugar de fala”, indago: que prazer ou desvergonha te mantêm nessa condição?

Corrupção na base, vereador, personalismo

Há uma crença simplória de que a questão da corrupção se resolverá com a “limpeza ética” que os eleitores farão nas próximas eleições. Sabidos os corruptos e havendo indignação manifestada, é mesmo de se supor reação. Não acredito.

As eleições e os eleitos são um aspecto do fenômeno. Aspecto importante, mas não determinante dos demais. A corrupção tem, diga-se, níveis e se consubstanciou como um modo de intermediar interesses como qualquer outro. Considero o nível municipal: o Brasil possui 5570 municípios: aproximadamente 130 cidades têm mais de 200 mil habitantes; cerca de 300 tem mais de 100 mil. Quase 70% dos municípios brasileiros possuem até 20 mil habitantes (IBGE).

Nos municípios de pequeno e médio porte os cidadãos e suas supostas honestidades conseguem acesso às autoridades. Às autoridades se pressupõe uma função: atender pedidos. O vereador, sobretudo, é um atravessador de solicitações. Nossas relações políticas são “cordiais”.  Elege-se um vereador por relações afetivas; pede-se ao vereador um mandato afetivo. Nas circunstâncias familiares dos eleitores está pressuposta a sua presença com demonstração de intimidade.

É dever do edil fazer-se presente, de preferência acompanhado da mulher (sim, a grande maioria é homem), no casamento, nos aniversários, no batizado, na primeira comunhão, na crisma, na formatura, no velório, na missa de 7º dia.  Desculpa-se a não permanência, mas tem que “dar as caras”. No “dar as caras” está o momento de conversas à parte: hora de pedir. Nas relações de afeição estão incluídos os encaminhamentos das necessidades do eleitorado.

Ou é isso, ou o político não tem prestígio. “Então, pra que serve?” Pra atender a vontade do eleitor, o vereador compromete-se, em geral, com o prefeito, que, com a máquina pública, “dá jeito” em pedidos intermediados e forma a “base”. “Base” é a maioria na Câmara Municipal. Desimporta a origem: situação ou oposição. Claro, primeiro “os nossos”, mas pra não se incomodar com requerimentos enxeridos que um vereador pode fazer, dá-se-lhe a devida colher de chá.

O vereador, para se estabelecer, expande os meios de atendimento. Por exemplo, tome-se o sistema de transporte da cidade: as “empresas de ônibus”. O aumento de passagem deve passar na Câmara. O dono da empresa sabe disso. Bem, quando morre uma pessoa de família pobre, raramente há recursos para o féretro ou para o cortejo fúnebre. A família precisa de um ônibus, logo, o vereador necessita de um ônibus. O dono da empresa sabe disso. O fornecimento do ônibus compromete família, vereador, empresa. É “bom” para todos e o vínculo pode ser perduradouro. Como “pessoas honestas” cumprem o apalavrado, nem carece pedir: os votos, os favores e os aumentos futuros aparecerão.

O eleitor “canta” os votos que granjeou em família e com vizinhos. Se contabilizar número significativo de votos, é constituído, pela natureza dessa corrente de relações, cabo eleitoral. O cabo eleitoral é um sub intermediário do político.

Exemplifiquei com ônibus. Vale para matrícula em creche, pavimentação de rua, “gato” de luz ou água, consulta médica, transporte com veículo público. O mau uso da coisa pública pode ser feito com o que quer que seja coisa pública. Grande parte da população vê o dispor dos próprios municipais como indicativo de importância, não de corrupção, então ostenta o “atendimento” que recebe. Refiro o cidadão comum exibido de suas “relações”, não do vereador.

Não votamos em lista partidária fechada, logo, não votamos em ideias organizadas. Votamos de pessoa para pessoa. Relações pessoais. Isso produz uma lógica ou uma racionalidade (Weber) fundada numa ética de favor e retribuição. Nossa tradição coronelista jamais se fundou em instituições. Somos alicerçados em personalismos. Na próxima eleição alguns políticos desgastados serão defenestrados. O sistema fundado em favor resistirá. O povo o quer.

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