segunda-feira, 6 maio , 2024
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Léo Rosa de Andrade

Conciliação dos poderosos dos Poderes

O correram recentemente rusgas de Poder. Não vejo conflito de competências, mas reacomodação, ou atos e reações demarcatórias do poder dos Poderes da República e do poder dos poderosos que os ocupam.

Sobre os poderosos, mediram-se menos os seus limites legais e mais se aferiram as suas balizas egóicas, ou inchação de vaidade. A fatuidade do político, ou a alta conta em que ele se tem, forma-se com a eleição.

Eleger-se para um cargo público é consagração. Ser ungido pelo povo, fazendo-se, ao fim de uma campanha eleitoral, preferido entre tantos, é demonstração de reconhecimento público de prestígio pessoal.

Mais ainda é assim no Brasil, dado que aqui se escolhem políticos por atributos pessoais das mais diversas ordens ou por negócios particulares de compra e venda de votos, desprezando-se siglas partidárias.

Já o magistrado não passa por nenhum teste de urnas. É um burocrata distanciado do escrutínio público. Sua ascensão na carreira dá-se por jogos e regras internas, as quais de nenhum modo a população influencia.

A consagração popular de um juiz só é possível se sua decisão ganhar notoriedade, ou seja, se circular na mídia. Decisões judiciais costumam obter status de mídia se alcançarem figuras midiáticas. Político é mídia.

Houve tempo em que juízes mantinham distância das ruas. Era de mau tom para a sua condição majestática falar fora dos autos. Tempos passados. Atualmente, juízes apreciam a repercussão de suas decisões.

Afora essas questões que são menores, não obstante receberem importâncias maiores, as instituições brasileiras vão bem. Vão, todavia, bem se forem considerados os aspectos constitutivos de nossa cultura.

Nossos costumes jurídico-políticos refutam, ou driblam, conforme interesses pouco declaráveis, as bases constitucionais da Administração Pública: impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade, legalidade.

Nossas instituições não são infensas às interferências de reputações; a moralidade nacional não resiste a qualquer meio que justifique certos fins; abandonamos a eficiência se necessitamos proteger os “nossos”.

Levamos a público o necessário para o público ser manipulado, mais atuamos à socapa do que com transparência; nossa ideia de legalidade é mais para os outros do que para nós mesmos ou nossos amigos.

Somos interesseiros, valorizamos instituições se e quando suas posições coincidem com nossos interesses. Governantes à esquerda e à direita submetem-nas ao peso dos jogos inconfessados do poder privado.

Eu diria que estes são os recentes fatos do “mundo Brasil”: alguns movimentos de rua expressando desgosto difuso, a pusilanimidade e a corrupção espraiada dos governos petistas sacudiram nosso marasmo político.

Derrubados os petistas, ascendem seus cúmplices, os peemedebistas. Estes revelam-se tão assaltantes do erário quanto os petistas o foram. Tudo restando desmoralizado no mundo político, o Judiciário avança no vácuo.

Enquanto o Judiciário investia sobre políticos ou empresários, só se tentou “conter a sangria”; a opinião pública reagiu. Quando o STF atropelou o Senado da República, inobstante a contrariedade geral, houve reação.

Já não se tratava de proteger da cassação um senador, ou, depois, do afastamento do cargo, um presidente da República. Tratava-se de defender a classe política, uma parte básica do poder real do Brasil.

Os poderosos membros dos Poderes, sem nenhuma causa digna, estão exercitando uma recorrente “causa” nacional: conciliação por cima. A velha e viciada política está compondo um acordo de delimitação recíproca.

Suponho que o Executivo gerirá sem muitos sobressaltos seus tristes dias finais. Suponho que o Legislativo se legitimará nas urnas com grande repetição de seus quadros. Suponho que o STF meio que se refreará.

Religiosos, ideologia de gênero, Barroso, Einstein

Considerando a população adulta, em 1994, os católicos somavam 75%; hoje, 57%. Os evangélicos, em 1994, estavam com 14% dos crentes; atualmente, 28%. Espíritas eram, em 1994, em 4%; hoje são 3% (Datafolha).

Para a Presidência da República, e considerando os preconceitos circulantes entre os brasileiros, apenas 13% votariam num ateu; 84%, num negro; 57%, numa mulher; 32%, num homossexual (André Petry – Veja – CNT/Sensus).

Somos, conforme os dados acima, 2/3 homofóbicos, 3/5 machistas, 1/5 racistas. É muito preconceito. Mas a questão religiosa nos é a mais cara: 9/10 da população repudiam o descrente da divindade cristã.

Os evangélicos avançam sobre os católicos. Evangélicos e católicos são mais ou menos a mesma coisa, mas não são exatamente iguais. Os católicos nasceram donos do poder. Os evangélicos militam por espaços de poder.

Evangélicos fazem política com profissão de fé religiosa. Elegem-se sob compromisso religioso. Atuam nas diversas esferas políticas como prosélitos de sua fé. O obram no mundo com bastante coerência entre a palavra e o ato. Exemplo:

“O vereador […], que é pastor evangélico, denunciou a marca de sabão Omo ao MPF, alegando que a publicidade veiculada na semana do Dia das Crianças, que estimula a liberdade de brincar, representa uma ‘guerra contra a família brasileira’”.

Atacada por correntes conservadoras, a propaganda propõe aos pais um ‘recall’ das brincadeiras que reforçam clichês de gênero. Para o vereador, a publicidade feriu o ECA” (Editado, Dagmara Spautz, DC).

A internet está prenhe de dados informando que os evangélicos crescem nos parlamentos de todos os níveis: municipal, estadual, federal. Eles encasquetam-se com duas ideias: a favor da Bíblia, contra as políticas de gênero.

Para restabelecer o que consideram a “moral” e os “bons costumes” dignos de serem restabelecidos, pregam, aconselham, imprecam, militam, protestam, censuram, processam, legislam. Diatribes fundadas na “palavra do senhor”.

Dados a si como intérpretes das Escrituras – de fato, as Escrituras dizem barbaridades -, exigem pudor sexual de toda ordem. Seja: não defendem um código de rigor moral para os praticantes de suas crenças, mas para todos.

O fundamentalismo reacionário despreza denominadores de convivência social. Seus “pastores” instam o furor popular, restabelecendo a intolerância religiosa vencida pelo processo civilizatório tisnado pelo laicismo iluminista.

Os brasileiros ilustrados não estão atentando o suficiente para esse fenômeno que se alastra e se afirma no País. Preocupam-se com o efeito Bolsonaro; desatentam do medievalismo redivivo que a crendice popular recepciona.

 Felizmente, há reservas de lucidez no Supremo Tribunal Federal. Conforme O Globo (Renata Mariz, Carolina Brígido, editado): “A controvérsia em torno da ‘ideologia de gênero’ ganhou novo e importante capítulo nos tribunais”.

Decisão ainda inédita do Ministro Luís Roberto Barroso suspendeu lei de Paranaguá (PR) que proíbe informações sobre gênero e orientação sexual nas escolas mantidas pelo município e até mesmo a utilização de tais termos.

 A decisão em caráter liminar representa uma vitória da Procuradoria Geral da República que protocolou [diversas] ações na Corte contra leis municipais que vetam conteúdos relacionados à sexualidade e gênero nas escolas.

 Para Barroso, ‘Não tratar de gênero e de orientação sexual não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana, apenas contribui para a desinformação […], para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre.

 Tratar de tais temas significa ajudar a compreender a sexualidade e proteger contra a discriminação e a violência. Impedir a alusão aos termos gênero e orientação sexual significa conferir invisibilidade a tais questões.

 O ministro tem a escola como um local próprio para que estigmas sejam rompidos. Para ele, omitir-se e não ensinar a respeito da diversidade replica a discriminação e contribui para a consolidação às crianças homo e trans.

 As escolas brasileiras, que sempre foram um aparelho ideológico do cristianismo, só muito recentemente obtiveram espaço para discutir e promover valores mais diversificados, mais contemporâneos, mais arejados.

 Religiosos julgam com a Palavra, compilação de suspeitosa autoria e intempestiva vigência. Elejo o julgamento do STF, ou o juízo de Albert Einstein: “a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas”.

O abuso de autoridade, o projeto de lei atinente

A tradição brasileira é autoritária. Não há quem se volte à compreensão do Brasil que não perceba nossos afastamentos de classes, nossas hierarquias sociais, nossas exclusões geográficas, nossas distinções de cores. Disso, e de mais disso, supostamente, advém o nosso mandonismo privado e público. O privado apela ao “sabe com quem está falando?” O sujeito “de valor” sempre terá um bom relacionamento para fundar sua jactância.

O público, o autoritarismo de nossas autoridades, consubstancia-se no “carteiraço”, no “cale a boca”, no “teje preso”. Muitas autoridades “incorporam” a autoridade da função; deveriam exercer a função com autoridade. Bem, tramita no Parlamento projeto de lei com declarada intenção de conter abusos de autoridade. Não falta quem presuma que a vontade de seu autor é preservar desvios de certa autoridades do exame legal de outras.

A coincidência da sua propositura, quando políticos e empresários de alto coturno estão em apuros porque investigados por Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário deixou o projeto sob suspeição. Com Renan Calheiros não há coincidência. O Mensalão e a Lava-jato alcançaram os intocáveis do Brasil. Fazer uma lei para proteger-se seria da “natureza” da tradição brasileira de abrigar nossos “setores representativos”.

Houve melindre de poderes: o artigo do projeto (incorporado por Calheiros), pretendia que se um juiz exorbitasse na interpretação de um texto legal seria enquadrado em crime de abuso de autoridade. Adveio apropriada reação. O projeto de lei, em sua versão “vingança”, preveria o que se convencionou chamar de “crime de hermenêutica”. Seja: temia-se que a interpretação, pelo juiz, da lei ou a avaliação de fatos e provas restasse criminalizável.

Anota-se que a Procuradoria Geral da República, por meio de um grupo composto, inclusive, por membros do MPF e MP estaduais, formulou projeto de lei sobre a matéria com artigo disciplinando a controvérsia: “Não configura abuso de autoridade a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, desde que fundamentada” (inciso I, § único, artigo 1º). Descaberia, pois, apreensões com a hermenêutica.

Mas, ora, num país que firmou a interpretação legal livre, descompromissando o juiz até mesmo de antecedentes de tribunais superiores, a expressão “fundamentada” caiu como controle do magistrado e mesmo do Judiciário. Bem, o substitutivo do senador Roberto Requião retirou do texto a exigência “desde que fundamentada”. Já não resta risco de serem criminalizadas, nem a interpretação que o juiz dê à lei, nem a sua avalição de fato ou prova.

A fragilidade da lei é exigir dolo específico (“vontade deliberada de prejudicar outrem ou beneficiar a si próprio ou a terceiro ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal”). O legislador inviabilizou a aplicação da lei. Trata-se de subjetividades a serem provadas. É impraticável. Se a preocupação dos políticos fosse com o comportamento de um juiz que, generalizadamente, decreta prisões sem condenação, legislaram debalde.

O projeto da Procuradoria da República cumpria o controle de abusos. Não se poderia exigir uma hermenêutica não reformável (Renan). Mas estava justo que se exigisse fundamentação para divergências de tribunais (PGR). O projeto, se convertido em lei, se pretendia “enquadrar” o magistrado, sobrará ineficaz. Ademais do argumentado, há a questão adjetiva: a forma processual vigente prevalecerá, e não poderia ser de outra maneira.

Para um processo tramitar, seja por iniciativa privada, seja por vontade do MP, deverá haver denúncia, a qual haverá de ser recebida por um juiz, o qual presidirá a instrução, avaliará fatos e provas, sentenciará. Não há exagero quando se reclama dos políticos; muitos alimentam farta vontade de “conter a sangria”. Mas é excessivo dizer que o projeto, se aprovado, obterá sucesso em subjugar a Polícia, a Promotoria e o Judiciário. 

(Coautoria com Karine Gomes Vieira)

O Cau, a honra, a inJustiça da funcionária banal

Foi acaso: domingo, filme. Ao fim, num corredor, o Cau. Conversa descomprometida. Não se falou – e eu não falaria – sobre a situação que meu amigo enfrentava: vergonha por desonradez imposta por uma funcionária banal.

Banal, Hannah Arendt. Banalidade: atributo da insignificância, condição da trivialidade. O Cau foi preso assim, por um prenda-se enjambrado que perdurou o tempo de a funcionária que lhe determinou a prisão ser substituída.

Não o encontrei cabisbaixo. Vi tristeza. Se havia, não compreendi desespero. Mandíbula cerrada, isso era aparente. O sorriso irônico que o caracterizava estava sumido. Decisão já tomada, pois, agora suponho eu.

Aos juízes sempre se esperou que cumprissem e fizessem cumprir as leis. Tarefa que sempre lhes deve ter sido fácil, até porque a lei, ao fim e ao cabo, é o alvedrio pessoal do poder que o Estado concede ao magistrado.

Os juízes sensíveis ao mundo devem sentir alguma dificuldade quando se lhes pedem que façam Justiça. A idealização de fazer Justiça sempre beira a mentalidade do funcionário impessoal. Ou seria coisa de quem é justo?

Um bom juiz sabe seus limites de humanidade. Quanto a ser funcionário – a maioria o é -, ninguém quer sê-lo. Já um pretencioso tem-se por justo, e até se esforça por sê-lo; cumpre o métier. Tenho medo é do justiceiro.

O Brasil é justiceiro. Praticamos por demais linchamentos, seja na vida real, seja na vida das redes sociais, que espelha a realidade. O justiceiro com autoridade, realizando justiciamento fundado na lei é um horror.

Quando o Estado-juiz lança os aparatos da burocracia estatal repressora sobre um indivíduo, desmancha-lhe a vida. É um abuso que desarranja qualquer personalidade que resolva atropelar. Resta impotência para reagir.

Sobre o Cau veio o Termidor, figurado na decisão da funcionária que trata o poder que o Estado lhe confere com vulgaridade: prenda-se o reitor. Desimporta que se lhe incidam os rituais de humilhação dos encarcerados.

Cau foi preso sob suspeita de que obstaculizara investigações que uma comissão que ele instituíra realizava acerca de atos corruptos praticados em gestão que nem era a dele. Assim, banal: prenda-se para averiguar.

Trocada a funcionária, foi solto, mas foi se lhe foi mantida a determinação de exílio da Universidade. Que fazer? Andar desonrado por aí? Cau era cioso da sua dignidade e não tinha vocação para suportar as agruras de Josef K.

Não me alinho aos indignados aliados dos ladrões que acusam juízes de persecução seletiva. Nada disso. Estou na formação dos críticos do Judiciário: 48% dos presos brasileiros estão assim mantidos em condição preventiva.

Prisão temporária é por causa muito grave e por extrema necessidade. A legislação pertinente é claríssima a respeito. E há os efeitos: se para o juiz a decretação da prisão é uma “canetada”, para o preso é um anátema.

Por termo a própria vida é ato de vontade, é um direito. Suicídio não necessariamente é fastio ou fuga irrefletida da existência. Pedro Nava anunciou que ao tempo adequado se mataria. Cumpriu lucidamente o anunciado.

Getúlio Vargas tinha a biografia compromissada com a História. Dar cabo de si mesmo não foi ato desesperado, foi gesto praticado com extrema ponderação. Foi uma grande resposta política neste país de tantos políticos miúdos.

Domingo, ao fim do filme (Polícia Federal – A Lei é para todos), encontro Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Ele, ao me ver, dirigiu-se da borda da escada rolante do Shopping Beira Mar até onde eu me encontrava. Conversamos.

– Um elogio à Polícia Federal fundado na estética “efeito demonstração”, mas gostei, digo. – Justiça mediada pela mídia, estética midiática, diz. – E engajamento das autoridades, digo. – Justiça apressada, diz.

Silêncio. Então: – Fui posto nesse show espetaculoso; vou responder, diz. Esbocei palavras, mas um abraço me silenciou. E nem cabia falar. Vi-o retornar com vagar à escada que lhe ajudaria na resposta que formulara.

Segunda, a notícia triste. A morte foi no lugar medido. Cau foi um animal político. Seu último gesto público foi nessa condição. A decisão de morrer exposto objetivava expor sua condição de sujeitado a uma judicatura esbirra.

Seu ato de fazer-se morrer está insertado nessa conjuntura adversa. Foi um gesto de rebeldia, uma resposta rebelde ao escracho imposto à sua dignidade. Cau deu-se em holocausto aos seus compromissos consigo mesmo.

Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, discorre sobre a banalidade do mal. O nazista julgado não se caracterizava por um caráter doentio. Agia burocraticamente, zeloso no cumprimento do seu dever, só.

Como funcionário eficiente, não lhe cabia questionar o sentido ou as consequências do que fazia. Isso não é ontológico, natural ou metafísico, é alienação e manifesta-se onde encontra espaço institucional para tanto.

A magistratura brasileira nunca foi assim. Contudo, alguns juízes ou juízas desertaram as contas morais, não medem consequências. Ora, Justiça é poder, é ideologia. Toda sentença é uma escolha e suas implicações.

Honra, um valor. Quem banaliza a grandeza da sua função e exorbita da autoridade que lhe é outorgada pode não entender, mas para algumas pessoas a vida pressupõe a condição honrada de vivê-la. Era o caso do Cau.

Ciência e tecnologia, aulas de religião

Se algo restou de laico do trâmite do processo, foi o fato de o Estado, via Supremo Tribunal Federal, em votação discutida e com resultado espremido,ter sido a entidade decisória, e não uma igreja qualquer.

Por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal decidiu ontem que os professores de escolas públicas podem pregar suas crenças religiosas na sala de aula. A ação foi proposta pela Procuradoria Geral da República.

Crentes discursando divinizações para crianças é um atentado à civilização ocidental. Retrocedemos a um tempo histórico anterior ao Iluminismo, o maior enfrentamento à mentalidade religiosa de todos os tempos.

Hélio Schwartsman (FSP, 30set17, editado) resume a questão: “O Supremo Tribunal Federal cometeu um pequeno crime contra a garotada ao autorizar o ensino religioso de caráter confessional nas escolas públicas brasileiras.

A substituição do ensino confessional por uma abordagem histórico-antropológica permitiria uma interpretação mais harmônica do art. 210 combinado com o art. 19 da Constituição, que estabelece o princípio do Estado laico.

O que estava em jogo nunca foi a liberdade de expressão do professor, irredutível, mas sim o currículo oficial e a forma de recrutamento dos mestres, de modo a evitar o loteamento da disciplina entre igrejas mais atuantes.

Na publicidade de suas doutrinas, as religiões desenvolveram uma complexa rede de captura de fiéis que inclui pregadores individuais, propaganda boca a boca, canais de rádio e TV, cursos de catecismo, escolas dominicais etc.

Não há necessidade de dar às igrejas um púlpito nas escolas públicas. Nesse contexto, ao permitir que igrejas se apropriem de vagas de professor e de horas de aula, o STF perpetrou um delito de lesa-pedagogia.”

O imbróglio é uma herança petista (governo Lula, 2010), de uma esquerda alicerçada em compromissos com os fundamentos ideológicos da direita, incluindo alinhamento internacional contratado com uma multinacional da fé:

Um decreto promulgou acordo entre o Brasil e o Vaticano, o qual prevê que o “ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas” constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Eis a nossa (des)razão: um sincretismo de visões de mundo incidindo sobre crianças condenadas a conciliar divagações sobre criacionismo com aulas de ciências que discorrerão, se não censuradas, sobre evolução.

Esse caldo de concepçõestalvez nos desavisem, mas: “Os cortes orçamentários em Ciência e Tecnologia ‘comprometem seriamente o futuro do Brasil’ e precisam ser revistos ‘antes que seja tarde demais”.

Este é o triste diagnóstico de “um grupo de 23 ganhadores do Prêmio Nobel, que enviou uma carta ao presidente Michel Temer, recomendando mudanças na postura do governo com relação ao setor.”

E arrematam:“‘Isso danificará o Brasil por muitos anos, com o desmantelamento de grupos de pesquisa e uma fuga de cérebros que afetará os melhores jovens cientistas’ do País” (Herton Escobar, EstadãoExame, 30set17).

Somam-se outras notícias que parecem dissociadas da mentalidade religiosa, mas são de fundo comum: o orçamento para a Ciência e Tecnologia é o menor de todos os tempos, e os recursos estão contingenciados.

Decisões sobre verbas: não será difícil compreender sobre a urgência de alocar recursos para aulas de religião. Em época eleitoral, o agrado aos deuses é meio de atração ao povo tão preocupado com o saber da Nação.

O juiz e a cura gay: pistemologicamente, uma vergonha

Há uma discussão muito antiga acerca do que seja ciência. A postura mais importante que os cientistas têm sobre a ciência é de que ela é precária, no sentido de suas conclusões estarem sempre, por princípio, sujeitas a revisão. Ciência: “corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, e formulados metódica e racionalmente” (Houaiss).
No mesmo dicionário: ciência é o “conhecimento que, em constante interrogação de seu método, suas origens e seus fins, obedece a princípios válidos e rigorosos, almejando especialmente coerência interna e sistematicidade”. A primeira definição está mais adequada às nomeadas ciências exatas, digamos, ao estudo do mundo concreto. A segunda põe-se apropriada aos saberes do espírito, está sob a rubrica filosofia; pensa os pensamentos.
Há uma ciência das ciências: a epistemologia. Ela reflete sobre o conhecimento humano. É o “estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber científico, ou das teorias e práticas em geral”. As conclusões teóricas e as práticas são continuamente “avaliadas em sua validade cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas relações com a sociedade e a história” (Houaiss).
Nas teorias e práticas científicas prevalece uma preocupação: o cientista sabe que nas relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o seu objeto de estudo permeiam os referidos paradigmas estruturais. A dicotomização da relação entre o estudante e objeto do estudo científico nessas duas polaridades tradicionais das teorias do conhecimento já é coisa superada pela fenomenologia (Husserl). Mas resta a questão da ideologia.
Ideologia é um sistema de ideias que está subjacente em todo grupo social; é a matéria que compõe as mentalidades, racionalizando e justificando a defesa de posições de ordem moral, religiosa, política, econômica etc. O rigor do método científico procura neutralizar no cientista as incidências ideológicas, mas a sociedade em geral, ao formar compromissos e deliberar atitudes, não está imune às ideologias. Antes, pensa e age a partir delas.
Não obstante compromissos ideológicos, todos, cientistas ou não, temos um mínimo de discernimento. Sabemos, pois, que nas áreas da saúde há profissionais com formação adequada e há os charlatães. Charlatão: “que ou quem, ostentando qualidades que não possui, procura auferir prestígio e lucros pela exploração da credulidade alheia; mistificador, trapaceiro, impostor” (Houaiss). O charlatão vende o que não entregará.
Ora, decide um juiz de Direito (Waldemar Carvalho) determinar ao Conselho Federal de Psicologia interpretação tal da Resolução nº 001/1990 que permita a psicólogos atender queixosos de sua sexualidade a busca de cura. Seja: “não interpretá-la de modo a impedir os psicólogos a promoverem estudos ou atendimento profissional […] pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria”.
Data venia, o magistrado não garantiu liberdade científica. O que fez foi avalizar uma prática charlatã, a de que alguns psicólogos, sabidamente permeados por ideologia cristã, passem a vender um serviço que não entregarão. A Resolução 001/1990 funda-se em posicionamento da Organização Mundial da Saúde adotado, em decorrência de estudos iniciados por Nicholas Cummings desde 1975, pela Associação Americana de Psicologia. Conclusão:
“A homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condição patológica.” Se situação sexual não é doença, não há que se falar em tratamento, pois. “Uma corrente forte da sociedade expressa abertamente o conservadorismo. Direito a ser conservador, qualquer um tem. Mas quem entende a sociedade de forma religiosa pouco acredita em direitos individuais.
Religiosos que levam ao extremo suas convicções não são diferentes na questão moral. Há uma lei divina a ser implementada” (Walcyr Carrasco, Época, 27jun16). O Estado declarado laico vive de ceder a conservadores. O Direito, como o faz a boa ciência, deveria saber o que não sabe. Um juiz não está preparado para medir dores emocionais. Talvez o magistrado nem tenha percebido a batalha ideológica que subjaz essa contenda.
“O que está em jogo é o enfraquecimento da interpretação da Resolução do CFP pela disputa da sua interpretação. O Judiciário se equivoca ao desconsiderar a diretriz ética que embasa a resolução.
Terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico” (CFP, https://is.gd/958Ntj). Sobra que o magistrado já sabe que errou, mesmo que responsabilize terceiros por tão só entenderem o que escreveu: “Considerando a interpretação e a propagação equivocada acerca da decisão proferida […]
Considerando que em nenhum momento este magistrado considerou ser a homossexualidade uma doença ou qualquer tipo de transtorno psíquico passível de tratamento” (https://is.gd/R4SVu0).
A questão, porém, escapa ao que o magistrado interpreta de si para consigo. Ela está no que se consubstanciou como a autorização de um juiz para o exercício da cura gay. Epistemologicamente, uma vergonha para o Brasil.

A Queermuseu, a cristandade, os costumes sacolejados, a interdição

É claro que o mover-se da História muda as coisas, incluindo as formas de expressão cultural. Mas não conheço tempo em que a arte não tenha sido negócio. Não sei de artista que não tenha buscado sucesso comercial.

Não vejo mal nisso. Não gosto é de ver os artistas postos num mundo à parte. Sempre haverá quem não se corrompa, mas, aí, trata-se de personalidade. Há tipos que não se vendem, mas isso não é apanágio da arte.

Quase todos os artistas trafegaram a alma, muitos mercadejam coisas tristemente horrorosas: lucram denunciando miséria, ou expondo miseráveis. Miséria humana bem pintada, criança miserável bem fotografada: lucro, sempre.

Claro que há denúncias que de fato denunciam. Há explicitações de miserabilidades que nos tocam e comprometem. Nas variadas expressões artísticas há revelações da miséria humana. Lembro Os Miseráveis, que me disse tanto.

Obras artísticas, contudo, são negócios. Victor Hugo vendeu a sua. Eu, se a criasse, venderia a minha. Não acredito que o artista viva para o bem do povo ou do mundo. Nem penso que tenha obrigação de fazê-lo.

O mundo está aí, é pré-dado, é o mundo da vida (Husserl). Todos somos um dia lançados no mundo (Heidegger). Somos colocados na História. Os brasileiros somos postos nos significantes e significados históricos do Brasil.

Os brasileiros significamos o mundo com os significantes que nos foram significados. Nosso mundo significativo nos remete para nosso mundo conceitual. Nossos conceitos são os da Tradição Ocidental Cristã da Idade Média.

A Tradição Ocidental Cristã da Idade Média que habita o Brasil falto de letras nunca foi o bastante tisnada pelo Iluminismo. Napoleão Bonaparte não tomou suficiente conta da Península Ibérica. Restamos religiosos, cristãos, católicos.

Os conceitos cristãos católicos (as demais denominações cristãs talvez desconheçam, mas a Bíblia é de edição constantina) do mundo nos estão subjacentes. Os brasileiros não suportam provocações aos símbolos da cristandade.

Edito O Povo (https://is.gd/My6ld9), que registra confronto entre posições contra e a favor: “Após protestos em redes sociais, a exposição ‘Queermuseu’, no Santanter Cultural, em Porto Alegre (RS), foi encerrada”.

“O cancelamento da exposição foi correto, pois se deu mediante a uma resposta negativa dos cidadãos em geral como consumidores, incluindo os próprios correntistas da instituição financeira (milhares de cancelamentos de cartões do banco).

Trata-se de um boicote da própria sociedade. O caráter duvidoso das obras despertou indignação por se mostrar criminoso. Ridicularizar a fé dos outros está longe de ser arte” (Renata Karla – Grupo de Estudos Veritas)

“A exposição está marcada por controvérsias. Esse título atraiu outro público, que criminalizou a exposição, movido por uma visão de mundo fundamentada na defesa da religiosidade cristã, da família e das pessoas de bem.

O Banco Santander teve interesse de associar a sua marca à arte contemporânea, visando atrelar sua imagem às ideias e práticas de vanguarda, assegurando aos investidores que o Brasil é um país de pensamento arrojado.

Ao aceitar a pressão dos censuradores, despertou-lhes um sentimento de autoridade fiscalizadora dos espaços culturais, amplificada em práticas de linchamento público” (Carolina Ruoso, Professora de História da Arte – UFMG).

Recentemente O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu sofreu censura; as redes sociais exaltaram-se com mulher crucificada em parada gay; Joãozinho Trinta foi impedido de levar Jesus Cristo a desfilar num carnaval.

Arte é negócio, mas é também ideia. Quanto aos negócios, o Santander e os 85 artistas da Queermuseu negociaram-se. Ninguém está purificado dos proveitos do mundo. Mas arte também é expressão de liberdade.

O Santander e os artistas sacolejaram nossos costumes. Mas o Brasil é intolerante, presta conta a preconceitos. Vivemos acanhadamente as franquias desejosas. Prestamos tributo voluntário às interdições religiosas.

Religião ojeriza liberdade, sobrevive de censura. A história das religiões confunde-se com a história do controle das ideias. “A criminalização da arte é o último degrau antes da criminalização do pensamento e do desejo” (Andréa Pachá).

O punitivismo de certas feministas, o feminismo

Há quem insista em se posicionar socialmente como pessoa boazinha. Acreditam que gestos pessoais de brandura resolveriam violência social. Personalidades assim desobrigam-se de militância política por justiça e igualdade.

Não refiro posições piedosas que se originam em impulsos altruístas. A comiseração pelo sofrimento alheio é tão fundamental que compõe as condições de sobrevivência da espécie. Sem ela, não teríamos saído da selva.

Ser solidário, entretanto, não é ser piegas, é, antes, estar atento à justa medida das coisas. Claro, “a justa medida das coisas” é concepção subjetiva. Mas os conteúdos da subjetividade não são essência humana.

Valores sociais circulantes ao tempo e lugar da nossa existência nos alcançam e nos constituem o espírito. Mais ou menos, portanto, em uma dada sociedade, a noção de equidade, ou de “pode x não pode”, é compartida.

Preceitos sociais são comumente apropriados por discursos de conservadorismo. Felizmente, há quem os critique, ou a História não se moveria. Um bom tanto arrosta princípios de convivências meramente para obter vantagens.

Seja, canalhas existem: canalhas espertalhões que atraiçoam com manobras legais; canalhas que agem à sorrelfa, atuando contra o público; canalhas bandidos, que partem para o confronto violento para se locupletar.

Autoridades que se justificam para receber “penduricalhos” em seus salários, ou ganhos acima do teto legal são os tipos que legalmente nos roubam. Autoridades que nos roubam em negociatas são os de prática à socapa.

Interessa-me o bandido violento. Excluo o de fato premido por injustas condições. Falo do canalha que da violência faz negócio. Certos ativistas sociais propõem que esses malfeitores sejam havidos como vítimas do “sistema”.

Esses piegueiros reacomodaram a bandeira dos direitos humanos (afastamento do deus cristão como fonte do Direito) para fazer da bandidagem um “fator histórico”. Partir para o crime seria uma virtuosa rebelião redentora.

Suponho que tal natureza de pensamento não é nova nem originalmente brasileira, ou Albert Camus não se teria preocupado em assentar na fala de um personagem seu a resposta a tal tipo de categorização do mal:

“Se dissermos a um criminoso que seu erro não decorre de sua natureza, nem de seu caráter, mas de circunstâncias infelizes, ele nos será violentamente reconhecido… Extraem desculpas das circunstâncias” (A Queda).

Essa “pureza d’alma” que toma os defensores de qualquer facínora gerou reação. Arautos do salvacionismo público querem que “bandido bom é bandido morto”. No Direito, acodem com o que se conhece por punitivismo.

O punitivista não defende dureza por crer na eficácia do rigor. Seu credo é o de que se resolvem problemas sociais com a aplicação draconiana da lei punitiva; quer o Direito Penal com instrumento de revanche.

Esse discurso não é conceitualmente conservador; é coisa de uma direita ignorante e exaltada. Enquanto o “pensamento” punitivista era a resposta dos reacionários a glamorizadores da bandidagem, tudo estava “normal”.

Agora algo anda meio assustador. Diante das barbaridades que o renitente machismo brasileiro vem cometendo contra mulheres, muitas feministas, talvez desavisadas do assunto, bradam por justiça intransigente e sumária.

Nisso, o clamor punitivista de esquerda e de direita coincidiram, lamentavelmente. Ainda que a causa seja válida – e o combate à cultura do estupro o é – pedir cadeia a qualquer custo é um retrocesso jurídico e civilizatório.

Está bastante justa, contudo, a solicitação de um tipo penal, ou seja, da criminalização de condutas insultantes que muitos homens adotam nos transportes urbanos, injuriando sexualmente mulheres.

Ensina Alice Bianchini que cabe a criminalização de uma conduta quando o tipo “se dirija à proteção de um bem jurídico relevante; que seja prevista uma ofensa grave, intolerável e transcendental a tal bem jurídico”.

Nessas circunstâncias, tipificando-se comportamentos repulsivos que se alastram, não se estará atendendo a políticas jurídicas de vingança, mas se produzindo respostas adequadas (ainda que com justiça retributiva).

As lutas feministas estão assentando valores de civilização no Brasil. Há excesso, todavia, quando se força a interpretação de normas para arranjar cadeia a qualquer preço para machistas.

A violência social nos faz a todos um pouco temerosos e bastante intolerantes. Mas a melhor concepção de segurança pública não deve acompanhar o senso comum que confunde justiça com vingança.

Sabidamente, a legislação vigente foi escrita e é decifrada sob inspiração ideológica do tempo dos homens. O feminismo traz a coisa toda para o tempo, não das mulheres, mas de iguais. Igualdade, em qualquer tempo, é boa luta.

De toda sorte, se cabe cautela com os cândidos que creem na justiça restaurativa para dar conta da humanidade, cabe prudência com justiciamentos. Entre a “minha” justiça e a lei, melhor o parlamentar e o juiz de Direito.

Porra, religião, machismo, política, lei

Na transição do estado de natureza para as diversas culturas, que ocorrências teriam conduzido a que se valorassem tão distintamente o que seriam, para o macho e para a fêmea, meramente tarefas por adequação às circunstâncias?
A biologia estabelecia (e estabelece) diferenças peremptórias entre machos e fêmeas. O ambiente natural fazia imposições aos humanos, que se adaptavam ou não sobreviviam. Não havia muita escolha. As distinções entre os sexos pediam aos sexos funções distintas. As funções distintas selecionavam e afirmavam condições machas e condições fêmeas. Machos e fêmeas selecionados (sobreviventes por adequação) reproduziam.
Isso é Darwin, seleção natural. Com a aquisição de cultura (a anatomia cerebral do primata humano desenvolveu-se em decorrência de culturas rudimentares assimiladas e transmitidas), aos poucos foram-se formando valores. Os primeiros (proto)valores não eram morais ou jurídicos, mas interdições, ou tabus. Eram regras proibitivas gerais para os agrupamentos, não se dirigindo, supostamente, com particularidades, para um ou outro sexo.
Daí, não se sabe exatamente como nem quando, surge a precedência doméstica e social do homem sobre a mulher. Adviria meramente da força física? Derivaria da fragilidade da mulher, sempre grávida ou amamentando? Eu suponho que a principal causa é a continuação das vantagens competitivas extraídas das condições corporais. Num tempo e situação em que o mais forte se impunha ao mais fraco, a vantagem era do masculino.
O homem era mais forte, mandava, só. Não acredito em determinações genéticas para mandar. Descreio em uma conspiração cultural de origem. É claro que raciocinando evolutivamente as coisas não são separáveis. Essa condição advinda da força física assentou-se como proeminência nas relações sociais. No princípio, talvez, impensadamente, no correr dos tempos, sem dúvida, com elaboração minudente, vigilância e punição.
Então os homens, despudoradamente, fizeram o mundo ao gosto da sua imagem e ao sabor dos seus interesses. Primeiro, dispuseram das mulheres para aproximação ou estabelecimento de relações entre grupos primitivos. À sua revelia, as mulheres foram convertidas em valor de escambo: entre tribos primitivas, os homens trocavam-nas (sem formação de laços familiares), seja por outras mulheres, seja por comida, seja por gado.
Diferentes culturas, à medida que se sofisticaram, atribuíram às mulheres distintas atribuições, mais ou menos prestigiosas. As culturas da Tradição Ocidental (semita, grega, romana) nunca as estimaram muito bem. A cultura grega exerceu ascendência sobre a romana, mas a cultura romana não é a grega. O patriarcado que marcou o direito ocidental foi o romano. O patriarca dispunha da mulher, da sua vida e da sua morte, inclusive.
Quando no século quarto, sob o império de Constantino (havido pelos católicos como o seu 13º apóstolo), fundiram-se as instituições romanas e as crenças católicas, mancomunaram-se lei (romana) com ideologia (cristã). Institui-se o machismo sob os auspícios da legalidade e das bênçãos do deus cristão: os homens, poderosos senhores da vida pública; as mulheres, submissas ajudadoras (comando bíblico) da vida doméstica.
A Revolução Francesa, o Liberalismo norte-americano, o código civil de Napoleão: o Direito. Os fatos do mundo, as condições materiais do pós-Segunda Guerra, as lutas feministas. O Direito foi assimilando mudanças. Mas o Jurídico ainda era dos homens, logo era deles a interpretação das leis. Homens continuaram matando mulheres. Se já havia veto previsto, não havia o assentamento social da vedação. Honra, era a alegação exculpatória.
Em nome da honra homens matavam impunemente mulheres até os fins do século passado. E ainda se alega tal razão. Cola muito menos, é verdade, mas circula, assim como circula “bons costumes”, “recatamento”, “do lar”. O arrefecimento da mentalidade religiosa afeta o machismo, mas não o bastante. Os espaços sociais conquistados pelas mulheres afeta a vida doméstica, lugar onde se realizam as formalidades de submissão.
As mulheres, contudo, já detêm condições econômicas de vida livre. Muitas reagem. Os homens reagem à reação. O machismo não tolera insubordinação, requer os costumes, pede as práticas da tradição. O Direito atropela o machismo. Fá-lo a ponto de prever o feminicídio. Nossos costumes, entretanto, não o acompanham. Tanto assim é que ainda nos destacamos no mundo como matadores de mulheres.
Agora, a notícia de um sujeito que, surpreendendo uma mulher, jorra-lhe porra sobre o corpo. Um juiz tem sua decisão sobre o caso fartamente criticada. Os críticos não compreenderam que há uma lei a ser cumprida. O machismo é anterior à decisão do magistrado. Esse modo de pensar é pouco rechaçado pela legislação penal. Ainda que venha sendo coibido, a base ideológica da norma repressiva reflete os costumes de lá de 1940.
Houve uma grita geral requerendo tipificação do ato como estupro. Ora, para que se caracterize legalmente esse crime, tem que haver constrangimento, seja, o autor teria que ter coagido a vítima de alguma maneira. Não se deve confundir o vocábulo constrangimento de uso corrente (forte desagrado de alguém por algo que não pode evitar), com constrangimento núcleo do tipo penal: uso de violência ou grave ameaça conta a vítima.
Sem dúvida o acontecido nos envergonha a todos. Não se deve pedir que o juiz atropele a Lei, tomando medidas para aplacar o furor social. Isso seria cair em punitivismo penal, um horror anticivilização. O ato do “ejaculador” configura-se como importunação ofensiva ao pudor, lamentavelmente uma mera contravenção, apenada com multa. Ora, aplicada a pena, o juiz não teria como manter o indiciado preso.
Mais, para elucidar: não era uma faculdade do juiz manter a prisão. Se o fizesse, cometeria abuso de autoridade. Quem se prestar a ler a decisão verá que todos os aspectos relativos foram bem considerados. A questão é grave, certamente. Há risco a terceiros no comportamento do acusado. O Estado-juiz não abdicou de suas obrigações, previstas pelo Estado-legislador. O Estado-legislador é o povo que escolhe o parlamentar.
Não gostamos de nos meter no nosso “destino” legal. Talvez não entendamos que as leis, em última instância, são consequência das eleições. O grito antimachismo, pois, deve consubstanciar-se em campanha eleitoral. Os conteúdos ideológicos da lei que o juiz deve obedecer brotam da mentalidade do parlamentar que elegemos. Talvez acalantemos a consciência destilando desgosto por redes sociais. Bem, não basta. Há que fazer política.
Nossa tradição patriarcal e nossa crença abraâmica sustentam a mentalidade de boa parte dos eleitores. Nosso asco por política neutraliza um tanto de críticos mais esclarecidos, mas que se recusam a atuar. O mundo real decorre de relações de poder concretas. Nossos parlamentos transluzem machismo e religião. As subjacências de costumes antigos operam pela sua persistência. Vamos à luta na próxima eleição?

(Coautoria com Karine Gomes Vieira)

Discursos de tradição, feminicídio, Brasil

Coautora: Karine Gomes Vieira

Não há consenso sobre o aniquilamento da população masculina paraguaia durante a guerra travada entre 1864 e 1870. A maioria dos estudiosos está concorde que o conflito dizimou algo como 90% dos homens acima de 20 anos.

A Guerra do Paraguai ocorreu há século e meio. Hoje, os quase sete milhões de habitantes daquele país são metade homens, metade mulheres. Em tempos de natureza, cento e cinquenta anos não são nada.

Nesse nada temporal o equilíbrio de nascimento entre os sexos se restabeleceu. Quem se der ao trabalho de estudar os dados estatísticos verá que foram nascendo decrescentemente mais homens até ocorrer paridade.

A população mundial divide-se quase igualmente entre homens e mulheres. As poucas discrepâncias relevantes que ocorrem são consequência de conflitos armados de grandes proporções ou de migrações de um único sexo.

Os Emirados Árabes, como quase todo o Oriente Médio, concentra, hoje, quase três homens para cada mulher. Isso decorre de a região receber levas de imigrantes homens que vão procurar emprego sem suas famílias.

Outro desequilíbrio sucede na Rússia e nos países que compunham a União Soviética – URSS. Quinze por cento a mais de homens. Explica-se a redução da população masculina: guerras mundiais e assassinatos de Stalin.

O Brasil está equilibrado. Noventa e sete homens para cada cem mulheres. Talvez a violência urbana e rural e as mortes no trânsito (matamo-nos mais do que em países com guerra civil) sejam a causa da pequena diferença.

O equilíbrio mundial de nascimento de um e outro sexo impressiona. Os estudiosos do assunto têm dados que mostram que após grandes tragédias nascem mais mulheres que homens, depois tudo volta ao normal.

Que levaria a isso? Não há controle humano possível. A natureza, então, teria vontade própria incidente na questão? Não há explicação conclusiva. Não dominamos todos os acontecimentos do mundo. Ainda não nos elucidamos de todo.

O humano não se sabe completamente. Uma hipótese afirma que somos uma falha da natureza. A evolução produziu os códigos genéticos. No tempo e no espaço os animais, afora os humanos, se repetem.

Os bichos de uma mesma espécie comportam-se de modo igual sempre. As modificações que eventualmente estabelecem diferença derivam de relações com o meio ambiente e produzem seleção.

O humano consolidou-se seletivamente como uma coisa à parte. Nós pensamos sobre o nosso próprio pensamento. Sabemos que sabemos. Acumulamos conhecimento. Criticamos a nós mesmos e podemos nos rever.

No hardware (a máquina humana) instalou-se software (a cultura humana). Isso está claro. Mas sabe-se que a coisa é mais complexa. A cultura instalou-se na máquina antes de a máquina ficar completamente pronta.

Conteúdos culturais, pois, não são apenas uma instalação posterior ajustada a um cérebro pronto. Cultura e anatomia implicaram-se. A cultura encontrou condições no cérebro. O cérebro evoluiu com propiciações da cultura.

Na natureza animal há macho e fêmea. Humanos, um dia, foram macho e fêmea. As condições de anatomia, ou de bioquímica, separaram funções sociais. O desempenho selecionou os melhores no cumprimento das funções.

Na selva as diferenças físicas do macho e da fêmea recomendavam diferentes papéis. A situação era meio binária. Na natureza, contudo, machos não matavam fêmeas nem discursavam hierarquia. Eram funções. Só.

Daí os homens (macho mais cultura) começaram a valorizar seus papéis e a subordinar os papeis das mulheres (fêmea mais cultura). Já longe do ambiente natural produziu-se socialmente o patriarcado.

O patriarcado prestigiou as funções sociais masculinas (funções não requeridas pela natureza). Criou discursos diferenciadores dos sexos além do que os sexos têm de diferentes. Surgiram controle e violência.

Os discursos patriarcais geraram o machismo. O machismo ocupou mentalidades de homens e de mulheres. Homens e mulheres mantêm, ainda que cada vez menos, a reprodução (historicidade) do patriarcalismo.

Tempos herdados: produção histórica patriarcal: sexos com papéis sociais distintos, controlados, repetidos. Novos tempos: construção social libertária: equivalência entre sexos. Reações machistas: violências, mortes.

O macho natural situado como homem social houve-se com mais direitos do que a mulher social que resultou da fêmea natural. Diferenças biológicas preservadas, contudo, não justificam diferenças sociais ou brutalidade.

Tais coisas seguem codificadas em discursos de tradição, de famílias exemplares, de religiões. Homens e mulheres, por equívoco ou estupidez dão-se em holocausto aos seus rituais. Repetem um passado que só faz mal.

Essa persistência não é natureza. É ideologia. Defende diferenças inaceitáveis entre sexos. Ideologia vencida, não extirpada. Vigora entre machistas. É só ler os jornais: Brasil, quinto país do mundo em homicídios de mulheres.

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