sábado, 4 maio , 2024
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Léo Rosa de Andrade

EXPECTATIVAS

Nas questões amorosas, as palavras sofrem para revelar realidades. Como dizer sobre a vida mal finda de tantos casais? Os começos tão bonitos, tanto enlevo; os fins desastrados e odiosos. Isso me põe a refletir que as convivências acumulam muito mais rancor do que felicidade, fazendo-as perigosamente explosivas.

Ou talvez a felicidade nos valha menos do que nos vale o rancor. Ou a felicidade se gasta e o rancor se guarda. Quando uma convivência se encerra, parece-me, as animosidades que ela guardava já não cabiam mais nela, então acontece a explosão que espalha ressentimentos para todos os lados.

Vai-se até a dignidade. As almas ressentidas se ofendem com as entranhas da intimidade do casal. Acontece porque amantes, como deve ser, se desacautelam, depois o triste: insultam-se com o colhido na confiança que os amantes incautos se dão.

Uma coisa é certa: ao começarmos um relacionamento, importa pouco o que se sente; vale mais o que se faz o outro sentir. Isso é sedução. Sedução é o encantamento do outro, é o jogo de conquista.

Sedução é uma palavra de má origem. Comporta significados tais como deslumbrar, fascinar. O Aurélio, contudo, registra: “Inclinar artificiosamente para o mal ou para o erro. Enganar ardilosamente. Desonrar, recorrendo a promessas, encantos ou amavios”. Quando seduzimos alguém, pois, somos suspeitos de tudo isso; em verdade, fazemos tudo isso.

Adriana ¬Gerardi da Rosa e eu conversamos sobre essas coisas. Ela postou no seu Facebook: “A decepção acontece quando você descobre que o caráter de uma pessoa não combina com o belo sorriso que ela expressa. E a prova fica por conta das atitudes”.

Comentei: “Penso que a decepção acontece quando se frustram nossas expectativas. O outro não tem que cumprir o mapa que traçamos para o comportamento dele. Nós desenhamos um ideal de alguém que, muitas vezes, nem sabe disso”.

Adriana insiste em responsabilizar o outro: “Mas quantas vezes não somos enganadas por sujeitos propositadamente travestidos? Quantas vezes pessoas disfarçadas não deixam suas máscaras caírem?”

Contesto: “Muitas, claro; nós, afinal, usamos máscaras. Preocupam-me, contudo, as máscaras que nós, por conta nossa, pespegamos em outras pessoas, e nos iludimos, então, concluindo que elas são o que queremos fazê-las ser. Quando a realidade nos mostra outra coisa, decidimos que o outro mudou. É provável que o outro, apenas, não seja o que gostaríamos que fosse”.

Reconheço que o outro pode, de fato, produzir-se mentirosamente, mas não retiro a minha responsabilidade em aceitar ilusões: “O outro talvez não seja o que aparentou ser, mas todos entramos em uma relação dando indícios de como somos. Contudo, não falta quem constitua ilusoriamente o outro e depois não o encontre na vida real. Também há quem conte com mudar o outro, com reformatá-lo no transcorrer da convivência”.

Penso, emendo: “De fato, todos carregamos conosco sinais da nossa revelação. Nós nos dizemos em várias atitudes. Os outros podem nos ler; nós podemos ler os outros muito mais do que confessamos que poderíamos ter feito. Não olhamos, exatamente, com olhos de querer ver”.

Adriana aduz, com razão, que se deve considerar cada caso. Concordo que há muitos trapaceiros circulando, insinuando-se por aí. Eles são responsáveis por suas trapaças. Essa é a culpa dos ardilosos: os ardis. Nos casos de conquista afetiva, essa é culpa do outro.

Agora, a nossa: nós somos os responsáveis por nos jogarmos, por conta de nossa avidez de amor, nos enganos da ilusão, essa “promessa de prazer, felicidade, durabilidade etc. que se revela decepcionante, dolorosa ou efêmera” (Houaiss). E ilusão gera expectativa, uma “esperança fundada em supostos direitos, probabilidades ou promessas” (Aurélio).

Supostos direitos. Direitos que nós supomos serem os nossos. Não é incomum nos sentirmos titulares de direitos que o outro não nos deve; direitos que, não obstante nossa imaginativa fantasia, o outro jamais nos deveu.

Esse outro talvez nos tenha vindo com cantos sedutores, mas nós igualmente contribuímos com o desfecho desastrado, seja edificando nossas ilusões por sobre promessas inverossímeis, seja planejando ditar o modo e conteúdo do outro com base nas nossas expectativas.

Amanda de Araújo postou no seu Facebook: “Ainda não sei ao certo se as pessoas mudam ou apenas se revelam.” Ora, bem, todos mudamos, seja quando revelamos, seja quando somos revelados, embora só anotemos e reclamemos as transformações do outro. Nós mesmos, todavia, também vendemos ilusão e entregamos realidade.

Sabemos disso e, ademais, sabemos exatamente quando todo esse jogo já se deteriorou. Aí, muitos mostram a sua pior parte: perdem as ilusões, mas não largam suas expectativas sabidamente sem lastro.

Não sei, mesmo, narrar esse momento em que os devaneios caem na real, mas o sonhador não cai na realidade. Os sentimentos apaixonados destilam ódio. A raiva partilha-se em apego à obstinação. Sobra nada. Sobra esperança de que outro surja do outro que não aconteceu.

Sobre o tempo do amor

Lamenta-se a falta de amor. O mundo não estaria bem porque amaríamos de menos e de menos seríamos amados. Isso me soa contraditório: declaramos amor a tudo e amamos de todas as formas. Dizemos amar os pais, os filhos, os vizinhos, os índios, os mendigos, os bichos, o ursinho de pelúcia.

Amamos, na televisão, o artista da novela; no filme, o herói; no computador, os vídeos da internet, ou alguém em um teclado distante. Quando amamos de demasiado longe, amamos a própria imaginação. Restamos nos expondo sem pudor nem senso de ridículo em sites de relacionamento.

Ao cabo de tantas falas, parece que todo mundo se ama e ama todo mundo por muitas maneiras. Ou então deturpamos a palavra amor. Demos de usá-la para significar gosto ou interesse por qualquer coisa: o trabalho, a roupa, o veículo, o gato, o sorvete, o cachorro, até o cachorro-quente.

Creio que há declaração de amor em excesso no mundo. Mas esse amor declaratório é amor de outro tipo: é vazio, falado sem nada que venha de dentro; um uso vulgarizado da palavra; palavra sem emoção. Essa exuberância amorosa piegas é advento de emotividade popular barata.

Estou pensando no amor emocionado, na atração irresistível entre um casal que se conhece, se envolve e se deseja. Tenho gosto por forma e conteúdo da paixão avassaladora que nasce, vive e morre. Nunca me sai uma dúvida sobre como sobrevive um caso de amor que já morreu.

Há explicações de que um par se atrai pelo cheiro, por componentes bioquímicos, pelo fenótipo, por resistências a bactérias, por interesse, por relações de dominação, por busca de provimento, por sapiossexualidade, por associação com pai ou mãe. Talvez se ame por tudo isso e algo mais.

Eu sei que a paixão começa sem qualquer comedimento, com muitas promessas, com todas as ofertas, com uma busca ávida e insaciável do outro. Há um gozo sôfrego, inesgotável, mas que se enternece com um toque, uma palavra, um gesto. Um vendaval, ou uma brisa, é igual.

Os amantes querem tudo e contentam-se com pouco. São ciumentos, são generosos. Pedem demais e dão-se demasiado. Os amantes são caprichosos e egoístas, mas, contrariando-se, dão-se um valor tal como se cada qual valesse por tão só existir. A fase do “só vou se você for”.

Depois, como pode!?, a relação se constitui em suspeita recíproca entre as partes: uma tenta se apropriar da outra. Estabelecem-se limites sempre desrespeitados, os enamorados tornam intrusivos; eram cúmplices, agora são fiscais. Um pode-tudo se converte em um sistema de proibições.

Passa o tempo, vêm descuidos. Há mentiras, talvez traições. O amor fica sem viço. Vai-se o devaneado juntos, fica a rotina. O gozo da presença vira obrigação. A gentileza está dever doméstico. Os que se buscavam já só se aturam. Um silêncio carregado de sentidos ruins toma conta da relação.

Conversão dos sentimentos: prazeres em afazeres constrangidos; brincadeiras em rabugice. O tesão irrefreável, quando muito, sobra como carinho fraternal. O sexo afoito acaba em débito conjugal. O casal já nem briga; só resta um cansaço. Depereceu, sem mais, a fascinação.

Estranhamento: se o casal sobrevive, uma parte vai morrendo aos poucos e vê a outra morrer igual. É momento de se ir; as partes não se vão. O casal já não se afeta. Cada qual se deve uma última emoção: a de partir. Se a chama de um amor não se recobra ao sopro da vida, a hora desse amor se foi.

A ministra Damares e a goiabeira de cada qual

As crenças que preservamos estão em nós porque compõem a nossa cultura. Não só as certezas, mas igualmente nossas dúvidas decorrem dos credos que professamos. Fora da Tradição Ocidental, outras certezas, outras interrogações.

O pensamento que valorizamos é a expressão acabada da História do passado que nos alcançou na nossa vez de estar no mundo. Que pensará uma criança que acaba de vir à luz da Terra quando alcançar a idade adulta?
No geral, dependerá de como sua Sociedade se organiza; individualmente, dos seus encontros da vida cotidiana. Com o que se lhe assentar como certo e do que se lhe for interditado como errado, cada uma “medirá” as coisas todas.

Haverá valores relevantes e outros nem tanto. Religiões, por exemplo, são topoi. As fés e os costumes decorrentes são concepções cristalizadas em forma e conteúdo, recebendo o respeito quase geral da Sociedade.

Um topoi alcança status acima do bem e do mal. Investimentos em comportamentos que divirjam dos costumes de fundo sacro, portanto, serão expostos a controvérsias emocionadas ou até violentas. O povo reagirá.

Assim, v.g., não obstante a laicidade do Estado, “Cuba desiste de legislar sobre casamento gay em nova Constituição. Proposta de mudança saiu do projeto após rejeição em consulta popular; tema será tratado em referendo.

Cuba abandonou as mudanças que faria, abrindo caminho para o matrimônio homossexual na ilha, diante de uma majoritária opinião contrária da população manifestada nas assembleias populares.

A proposta inicial da nova Carta Magna, aprovada pelo Congresso em julho, incluía o artigo 68, que definia o matrimônio como a união ‘entre duas pessoas’, substituindo o conceito vigente de ‘entre um homem e uma mulher’.

O texto da Constituição foi submetido a consulta pública e a questão do casamento gay dominou as discussões. Muitos cidadãos parecem rejeitar o texto, assim como as comunidades religiosas, principalmente evangélicas.

A comissão é coordenada pelo ex-presidente e líder do único e governante Partido Comunista de Cuba, Raúl Castro. O próprio presidente cubano, Miguel Días-Canel, se declarou partidário do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Após os primeiros anos do triunfo da revolução de 1959, os homossexuais foram hostilizados em Cuba, um fato pelo qual o próprio líder histórico Fidel Castro pediu perdão e esclareceu não se tratar de política de Estado.

Uma das principais promotoras da inclusão de pessoas LGBT em Cuba é a deputada Mariela Castro, filha de Raúl Catro” (FSP, 20dez18, editado). Estado laico, burocracia comunista, líderes incontestes. Nada. Venceu a religião.

O narrado foi para ressaltar que crenças e preconceitos não são peculiaridade de direitista. É que se me ressaltou estranho a conduta da esquerda midiática diante da declaração da futura ministra de direita Damares Alves.

O que ela disse, que viu, em um momento desesperado, Jesus elevar-se a um pé de goiaba para salvá-la, parece-me concernente em um país em que 90% da população crê que existe um deus e um deus filho, Jesus.
Crê-se que Jesus existiu e que, se ele não retornar antes, o verão depois de mortos e ressuscitados. Bem, parece-me mais verossímil alucinar um deus enquanto pessoa viva do que morrer ressuscitar e, então, vê-lo julgando pecadores.

Essas coisas me enfadam, mas animam um percentual respeitável de brasileiros. No fundo, contudo, mesmo o crente, nas suas falas, sinaliza lucidez. Diz a ministra: “Tem criança que vê duendes, que fala com fadas. Eu vi Jesus”.

Ela traz a narrativa para o nível da fértil imaginação infantil. E justifica a sua visão. Era crente, almejava o “céu” acreditava-se em pecado grave: desesperança, pensamento suicida, Jesus. Há coerência no seu dizer acriançado e cristão.

Para fustigá-la, foi isolado o fator goiabeira. Mas há os antecedentes do seu conto: ela foi abusada, seguidamente, em casa, por dois pastores. Uma reflexão nos grita aos ouvidos de querer ouvir: quem é um pastor para uma crente?

Um pastor é o intercessor da sua divindade. Dia seguinte aos abusos cometidos ao lado do quarto dos pais, a família ia orar. O estuprador conduzia as orações. Culpa e fascínio. Manipulador, o pastor constituiu-a culpada.

Você é culpada, você me seduziu; é enxerida, dizia o pastor. Enxerida: intrometida. Na tradição religiosa diz-se súcuba, um demônio em forma de mulher que se mete sedutora por baixo do homem, levando-o à conjunção carnal.

Este país está pleno de crentes (de esquerda, inclusive) em Jesus, que o vê, que fala com ele. Há quem dele tenha obtido favores. Há esperançosos de ter uma “causa” que o sensibilize. As goiabeiras de cada um pouco se me dão.

Mas o respeito por uma criança que sofreu e que hoje, adulta, conta-se abertamente, a isso eu o tenho. E mais. A adulta porta uma causa. A ministra resta, por sua história, comprometida com o ministério da mulher. Que se advirta disso.

Advertir-se é atinar-se e às suas circunstâncias. Ministra, o sistema de crenças que produz pastores tais os que a violentaram é o mesmo que fornece o discurso que a senhora enuncia: “Mulher tem que ficar em casa”. Pense nisso.

João de Deus, crentes, leniência das autoridades

Lembro de sentir uma logo reprimida dose de humor tétrico quando, há algum tempo, li que um ônibus lotado de devotos, retornando de um culto qualquer, sofreu acidente, rumando por uma pirambeira e fazendo grande número de mortos. Foi-me impossível conter: Deus dirige reto por estradas tortas.

Com respeito às dores dos que perderam entes queridos, seja no ônibus, seja, agora, na igreja de Campinas, ocorreu-me: “Seja feita a vossa vontade”. Claro, o que agora escrevo pode ser insultuoso. Mas, já não basta? Esses pequenos, mas eloquentes Terremotos de Lisboa, parece, não alcançam a crendice popular.

Como o “senhor” pode ser conivente com essa mortandade? E como as pessoas se conformam? Bem, se servos não indagam da vontade do amo, o mesmo não vale para a relação entre João Teixeira de Faria, vulgo João de Deus, e as autoridades competentes para intervir no seu sistema de manipulação de incautos.

A notícia dá indício de crime contra a economia popular: “João de Deus retirou R$ 35 milhões de contas bancárias após primeiras denúncias, dizem investigadores” (Patrik Camporez, O Globo, 15dez18). Mas, crimes à parte, o espanta são duas condutas, uma, a dos crentes em João, duas, a das autoridades.

Sobre os crentes, por que vão até tal sujeito? Não refiro os escandalizados atos sexuais, que, salvo vício de vontade de qualquer natureza, eram consentidos. Indago o que leva pessoas com um mínimo de discernimento a procurar um médium? O que esperam? Que desespero as move?

Depoimento de psicóloga, 38 anos, de Brasília (Diário Catarinense, 14dez18): “Entendo perfeitamente quem foi abusada por ele sexualmente. No meu ceticismo, consegui me livrar”. Narra fatos e compreensões suas e, então, reflete: “Você se sente uma idiota, uma imbecil. Como acreditou na lábia dele”?

A psicóloga se espanta consigo: “Sou uma pessoa formada, instruída, e caí nessa”. Somos condescendentes conosco. Não penso que alguém “cai” nessa.  As pessoas vão em ato de servidão voluntária e se “jogam” nessa. Fazem-no tocadas de crença no impossível. Superstição barata.

Sabe-se que o “atendimento” ocorre há quase meio século. Há muito tempo, portanto, a crendice demanda tratamentos espirituais. Contudo, não obstante relatos anteriores de abuso sexual, somente quando o assunto foi ventilado pela Rede Globo de Televisão passou a ser tomado consequentemente.

Um programa denominado Conversa Com Bial (07dez18), substitui-se às autoridades competentes e ouve mulheres. Levou ao ar narrativas de fatos que fizeram com que promotores das áreas criminal e da defesa da mulher, por todo o Brasil, passassem a ouvir e colher depoimentos de vítimas.

Segundo matéria do Estadão (09dez18), que refere O Globo, em relatos mulheres “alegam que foram molestadas em consultas feitas entre 2014 e o início deste ano. Em um espaço particular, a portas trancadas, teriam sido obrigadas a praticar atos sexuais e teriam o corpo tocado por João de Deus”.

O motivo alegado por João, mas também, segundo tudo o que leio, buscado pelas vítimas era “uma limpeza espiritual”, além de curas, sucesso etc. O que me assombra, repito, é as pessoas acreditarem em “limpeza espiritual”, confiarem que um médium (antes, claro, creem em médium) pode curar.

E botam fé, igualmente, no poder da malignidade: Zahira Leeneke Maus: “Eu tinha medo de eles me mandarem espíritos ruins. Eu estava com muito medo. Agora me sinto protegida e sinto que a verdade tem que vir à tona” (Estadão, 09dez18). Que tipo de mentalidade é “forçada,” de verdade, por “espíritos ruins”?

Conforme a delegada Marcella Orçai a PC de Goiás recebe denúncias contra o médium há 10 anos. “Já foi investigado em procedimentos entre 2008 e 2011 pela Polícia Civil, que foram concluídos e encaminhados ao Judiciário, mas que não geraram condenação. Desde 2016, a polícia já investiga, com inquérito em aberto”.

A delegada esclarece que o Ministério Público abriu um procedimento específico para o fechamento da casa onde o médium atende o público (DC, 12dez18). Então, minha indagação às autoridades: Por que não se buscou o fechamento da “casa” desde logo, dado que lá se praticava evidentemente charlatanismo?

Justiça decreta prisão de João de Deus. “Promotores entendem que podem ser configurados três crimes a partir dos relatos: violação sexual mediante fraude; estupro, caracterizado por qualquer ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça, e estupro de vulnerável, o mais grave” (Natália Cancian, FSP, 15dez18).

Justiça tarda e falha. Impostores exploram a credulidade alheia, agenciam interesses com o sobrenatural, “salvam”, curam, praticam crime em público, em programas de televisão. Havendo crentes dispostos a sustentá-los e leniência das autoridades, os charlatães vão continuar. É bom negócio. Por que não?

Direita religiosa, esquerda velhaca: estamos mal

Uma palavra fora de moda: caráter. É o “conjunto de qualidades (boas ou más) de um indivíduo, e que lhe determinam a conduta e a concepção moral”. Foi substituída por ética: “conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade” (Houaiss)..

Caberia a troca se as mesmas “regras e preceitos” fossem usados em situações análogas. Não é o que ocorre. Muitos bradam por ética, mas adulteram seu significado até que se torne útil para justificar atos de sua conveniência, dispensando-a para avaliar atos semelhantes cometidos por adversários.

O abandono de preceito exigível a caráter pretensamente justo tem ocorrido à direita e à esquerda. Fatos que mereceriam igual repúdio são prelevados e até defendidos em face de interesses, não de justiça, por todas as cores.

Atitudes inescrupulosas que torceram a compreensão dos acontecimentos e geraram indignação seletiva puderam ser vistas durante a recente campanha eleitoral e seguem em prática nestes tempos que lhe são seguintes.

Tomemos os “vazamentos de dados processuais”. A esquerda escandalizou quando veio a público ato ad hoc de Dilma que fazia Lula ministro “em eventual necessidade”. Deve ser sublinhado que o escândalo não foi com a nomeação “em caso de eventual necessidade”, mas com a publicidade do ato.

Bem, depois, a esquerda festejou o vazamento de uma conversa de Temer com um empresário. O vazamento consubstanciou-se na tela da Rede Globo, canal “suspeito”, “a serviço da direita”, logo, sem credibilidade. Com nenhuma hesitação de consciência, contudo, a esquerda festejou o vazamento e a emissora.

Igualmente, a Folha de São Paulo, quando noticiava a roubalheira do PT era indigitada como “complô da mídia com o Judiciário” para derrubar Lula. Aceita-se sua exatidão, todavia, se o jornal noticia as mensagens de WhatsApp “do Bolsonaro”.

Sobre vis insultos, difícil saber quem principiou. Sei bem que Bolsonaro queria “metralhar vermelhos”. Ninguém da esquerda quer esquecer isso. Entretanto quer-se olvidar Lula vociferando sobre “extirpar o DEM da política brasileira”.

Preocupa-me o conservadorismo de convidadoas para o ministério de Bolsonaro. Mas incomodei-me igualmente quando Dilma entregou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara para um pastor. Na ocasião, a esquerda quedou silente.

O Diário Catarinense traz “Os boatos desmentidos na semana da eleição”. A matéria mostra ser falso que a PF apreendeu van com urnas alteradas, preenchidas com votos, a maioria para Fernando Haddad, como é falso que o programa do PT propõe a criação da “Poupança Fraterna” e da “Moradia Social”.

O texto evidencia igualmente, com o escrutínio de Roelton Maciel e as 24 redações integrantes do projeto comprova, que é embuste a notícia de inscrição preconceituosa sobre nordestinos em camisa de filho de Jair Bolsonaro bem como a que o general Mourão propôs o confisco da poupança.

À direita e à esquerda, balelas sem qualquer lastro, mas sistematicamente divulgadas. “Rumores sobre a confiabilidade das urnas e do sistema eleitoral, deturpações das propostas dos candidatos e falsas acusações são alguns dos temas recorrentes encontrados […] e desmentidos após investigações […]” (DC12out18).

Não obstante contraditadas, essas e outras “matérias denunciadoras” permaneceram rodando. À direita, votos que se anulavam quando dirigidos a Bolsonaro. À esquerda, a negativa de que o candidato Bolsonaro sofrera um atentado.

A produção de fake news, convenhamos, foi “democrática. E segue bem distribuída. Vencedores e derrotados mantêm-se em jeitos insultuosos, salgando mentirosamente eventual noticiário que tende a lhes ser conveniente.

Que pode sair disso? Da direita: “É o momento de a igreja governar” (Damares Alves, confirmada no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos). Isso é o retorno da religião ao poder, com tudo o que a religião pode significar.

E da esquerda? Têm saído tolices de animar mídia. Eu sugiro considerar a realidade material dos fatos, reconhecer erros, desculpar-se por desmandos, investir na verdade. Verdade sobre si e não menos verdade sobre o adversário.

Bolsonaro venceu as eleições apesar dele mesmo (malgré lui-même). A direita venceu as eleições por causa da esquerda. Nossa esquerda roubou, mentiu, manipulou dados, desgorvernou. A esquerda nos conduziu à direita.

Parafraseio Isaías: “há-se de ter olhos de querer ver”. A esquerda foi condescendente com a esquerda velhaca. Todos sabiam das mentiras, mas “os olhos que só enxergam a mentira quando percebem a verdade, cegam (Karl Marx).

Muitos estavam cegados, e só enxergaram a verdade quando a verdade de um país quebrado pelo PT nos caiu pesada no colo. Não obstante, a esquerda das falcatruas fala em “golpe” ou em Temer, seu comparsa de negócios escusos.

Há de se ter caráter para assumir a autoria da derrota, dos erros que deram a vitória ao adversário. Navegando ao modo de agradar ao séquito próximo, entretendo uma plateia fácil, a esquerda desvencilha-se da obrigação de autocrítica.

Sobre a direita, não digo mais do que já se sabe: agora ela é direita com religião. Sobre esquerda, eu a acuso de ter feito e de estar fazendo o que diz que a direita faz. E de faltar-lhe caráter. Sem caráter, não dá. Estamos mal.

Hostilidade da esquerda, arregimentação agressiva da direita

Pesquisas em psicologia demonstraram que, afora temas conjunturais com incidência marcante em momento de eleições, os eleitores formam perfil psicológico distintivo com forte tendência a votar ou à esquerda ou à direita.

Luiz Hanns, da Casa do Saber, (https://goo.gl/US5Yn2), explana que Jonathan Haidt, baseado em psicologia evolutiva, animal e social, investigou nos cinco continentes, atento a culturas diferentes, alcançando os mesmos resultados.

As pessoas formam suas preferências fundadas em cinco fontes diferentes. Cada uma delas desenvolve comportamentos polarizados. A primeira é a noção de compaixão, que vem junto à aversão a quem causou um mal.

A segunda dupla opositiva associa-se à justiça. Diversos animais, destacadamente macacos, reagem mal à injustiça. O justo pode ser a retribuição à produção efetiva (meritocracia), ou ao esforço por um resultado (dedicação).

A terceira fonte é a noção de identidade, ou de pertencimento. Animais em geral têm tendência a se agrupar, formar “tribos”. Grupos estabelecidos (religiosos, desportivos, políticos etc) tendem a rejeitar e até ser hostis a outros grupos.

A tendência em se relacionar com iguais tem como contrapartida a existência, nos grupos, de quem ouse, não obstante o temor, curiosidade ou excitação em conhecer e, logo, buscar, o diferente, o forasteiro, a novidade.

Uma quarta polaridade relaciona-se ao respeito à ordem e à autoridade. Do mesmo modo, entre animais e humanos observa-se acatamento de hierarquias e regras. No polo oposto está a sensação de submissão e perda de liberdade.

A quinta liga-se à virtude e à pureza. São os tabus, as formas aceitas de comportar-se, as restrições, a autocontenção etc contrapondo-se à vontade de experimentação, de maior liberdade, de promiscuidade, do hedonismo, da curtição etc.

Essas várias polaridades mostram que eleitores mais à esquerda costumam priorizar a ideia da compaixão, da justiça social, da ajuda governamental aos mais fracos, e que valorizam o empenho pelo sucesso mais que o resultado obtido.

Quanto à autoridade, os eleitores de esquerda, bem ao inverso dos de direita, a veem muito negativamente. Desgostam de hierarquia rígida e preocupam-se com abusos e desprestígio de grupos socialmente mais fragilizados.

A direita prestigia a autoridade e a hierarquia. Valoriza como conquistas a regra, a harmonia e a organização social. Tem como difícil escapar do desentendimento e da anarquia. A compaixão lhe é importante, mas restringe-a ao grupo.

Sobre pertencimento, a esquerda é cosmopolita e prefere diversidade, variação de raças, orientações sexuais diferentes etc. A direita estima a identidade e desgosta do diferente; tolera-o, mas prefere-o excluído; pode derivar em ódio.

Quanto à virtude e ao comedimento, são percebidos por eleitores à esquerda como um sufocamento da experimentação e inovação, da ruptura com os usos e costumes etc. O esquerdista quer a vida “em aberto”, sem restrições.

A direita tem como perigoso abrir mão dos tabus, das santidades, da pureza e aceitar a devassidão, a promiscuidade, o hedonismo, a infidelidade. Teme que o rompimento com os usos e costumes leve à decadência e à desagregação social.

Hanns ensina que a região cerebral que lida com a percepção do perigo e com o medo (amígdala) é mais desenvolvida nos direitistas, logo, a percepção de ameaças é mais branda na esquerda. O temor, pois, incide em decisões políticas.

Narra também um teste feito com preferência humana por comportamento de cães. Direitistas elegem cachorros leais ao grupo e agressivos com estranhos. Esquerdistas preferem cachorros brincalhões e que se dão com “qualquer um”.

Diz por fim, que animais, quando o grupo está em risco sob uma opção, mudam para outra, agindo contra suas simpatias, se observam erros (incidência de conjuntura). Seja: há racionalidade (ou causa) na mudança de tendência.

Que correlação eu faria com o momento brasileiro? Primeiro, defino nossa direita: o núcleo duro do nosso direitismo é religioso (moral judaico-cristã), autoritário (apoia ditaduras), anticomunista (e nem é liberal, mas patrimonialista).

Mas esses não são o predicado do povo em geral, que é relaxado quanto a religiões (os evangélicos talvez mudem isso), vota à esquerda (Brizola, Lula, Dilma – até Collor era “antissistema”) e em economia só se interessa pelo resultado.

É plausível, pois, que a descambação à direita seja conjuntural: a roubalheira petista trouxe indignação; a insegurança pública trouxe medo; a hostilidade da esquerda (nós x eles) arregimentou a agressividade da direita. Oxalá a coisa passe.

Bolsonaro, ideologia, MEC, esquerdismo, direita religiosa

Escrevi e a Editora Acadêmica publicou Liberdade Privada e Ideologia. Para a minha satisfação, é obra esgotada. Aurélio Wander Bastos me fez a gentileza, em 1993, de cuidar da apresentação do livro. Do que ele disse, edito alguns trechos.

O autor “disserta sobre a utilização das ideologias pelo poder político, para acomodar as consciências individuais aos seus interesses e objetivos […] Estuda os efeitos das crenças e valores instituídos na determinação e submissão da consciência livre.

Considera livre o rebelde não apenas às ideologias impostas à sua própria consciência – a consciência de cada um não é a consciência individual, mas sim a consciência estabelecida –, mas ao próprio método que viabiliza os sistemas de ideias.

Entende que o poder manipula a opinião pública, não tanto para formar consciências, mas para deformá-las, para desencontrá-las de sua própria história privada. O autor conclui ou nos permite concluir que não existe uma história da liberdade privada, mas uma história dos mecanismos de corrupção da liberdade – a ideologia”.

Mesmo livro, palavras minhas: “A administração da Sociedade não ocorre de forma ostensiva. Pelo contrário, é sutil e se realiza com a aquiescência do administrado, no mais das vezes com a defesa apaixonada ou com suportes teóricos bem elaborados. O controle da Sociedade dá-se através da ideologia”.

À página 20 cito Nelson Jahr Garcia (O que é propaganda ideológica, Brasiliense): A função da ideologia “é a de formar a maior parte das ideias e convicções dos indivíduos e, com isso, orientar todo o seu comportamento social”.

Então, retomo: “A ideologia não se realiza a partir do indivíduo. A pessoa não a cria, não decide sobre ela. Pelo contrário, é uma totalidade ideológica que produz o indivíduo, ou mesmo o grupo. É a partir de um contexto ideológico que se forma atua ideologicamente, reproduzindo uma ideologia e um ‘ideologizado’, criando e mascarando as relações de poder e as contradições decorrentes (p. 20).

Os pressupostos que informam o comportamento do povo, o rumo a seguir, não emergem da ‘consciência’ de cada pessoa ou de ‘debates’ de grupos organizados. Há dogmas universais assumidos e reproduzidos pela ideologia (p. 21).

A ideologia cumpre funções de desenvolvimento emocional, de unificação de esforços, de ocultamento de interesses, de projeção para o futuro, de autoidentificação do indivíduo ou de grupos, de comprometimento com ideias e apoio a propósitos, de padronização de conceitos, de desencadeamento de ações.

As relações indivíduo-ideologia, se transcendem a percepção popular, são percebidas, em virtude de vantajosamente situados, por alguns, que podem interferir, e interferem, nas suscetibilidades de pessoas e grupos, logrando obter atitudes que parecem, a quem as pratica, nascidas de si, mas que, definitivamente, não são” (p. 23).

Resumo: somos produto de relações de poder; relações de poder tramam ideologias e produzem ideologias. Ideologias são a matéria do nosso pensamento. Como seres ideologizados, pensamos ideologicamente conforme a ideologia que nos ideologizou.

Daí, suponho, a frase de poder do Bolsonaro: “A questão ideológica é mais grave do que a corrupção.” Daí, seguramente, a sua escolha para o MEC. O novo ministro espelha a mentalidade da bancada evangélica: antiesquerdismo, elogios à Ditadura Militar, críticas às questões de gênero, apoio ao Escola Sem Partido.

“Os pastores não gostaram de ver alguém com perfil técnico chefiando o MEC e pressionaram Bolsonaro. Ricardo Vélez Rodrígues, que defende entusiasmadamente vários itens da pauta conservadora, vai compor a ala mais ideológica do governo” Hélio Schwartsman, FSP, 24nov18, editado).

Ele diz a que vem: Gerir a Educação guardando “valores caros à sociedade brasileira, que, na sua essência, é conservadora e avessa a experiências que pretendem passar por cima de valores tradicionais ligados à preservação da família e da moral humanista” (Renata Cafardo, Luiz Fernando Toledo, Estadão, 24nov18).

O MEC petista flertou com o esquerdismo barato: apologia de Cuba e da Venezuela; desdém da democracia: “meio da exploração capitalista”; defesa do terror jihadista; desprezo aos diretos humanos: “proclamação ocidental para destruir identidades culturais de outros povos” etc. A direita empolgou a questão: “No centro da mensagem da campanha de Bolsonaro não estava a economia, mas a agenda de valores e costumes” (Demétrio Magnoli, FSP, 24nov18, FSP).

Alguns (poucos) dissemos sobre os excessos da nossa esquerda (que é de direita); sobre o assalto crescente da mentalidade religiosa à ordem republicana; sobre a intelligentzia laica ter-se posto tediosa dos assuntos políticos; sobre o quanto a esquerda honesta condescendeu com a ladroagem petista; sobre um candidato do campo democrático eleitoralmente viável como alternativa ao EleNão.

É passado. A indignada reação popular somou-se aos preconceitos latentes acionados pelas falas de ódio da campanha. Ideologia de retrocesso: “O empenho evangélico ultrapassou a esfera religiosa, tornando-se uma força política. A última eleição não deixa dúvida, Deus se fez presente no palanque, pregando uma agenda conservadora, baseada na moral e nos bons costumes” (Fernanda Torres, FSP, 23nov18).

República laica, acometimento religioso, Luzia mulher

Há alguns dias venho festejando comigo mesmo o encontro, nos escombros do Museu Nacional, dentre outros itens importantes, do crânio de Luzia. Acompanho a garimpagem dos restos da desconsideração geral pela memória.

Essa me foi uma das melhores notícias desta quadra vencida por uma mentalidade que não acredita na existência da mulher que se estima tenha vivido há mais de 11 mil anos na região do sítio arqueológico da Lapa Vermelha (MG).

Por que não acredita? Por coerência. Boa parte dos que estão assanhados com a vitória de Bolsonaro crê que o mundo tem, apenas, 6 mil anos (Bíblia, Gêneses, 5 e 11), e não os 4,5 bilhões de anos estimados pela ciência.

Que o povo em geral creia nisso, explica-se pela incidência do catolicismo na Tradição Ibérica. Segundo levantamentos estatísticos, somos 90% de cristãos. A mentalidade de fundo de Espanha e Portugal fez a mentalidade do Brasil.

A questão é que Bolsonaro também acredita e – mais grave – ele quer que as escolas ensinem isso: criacionismo. A sua mentalidade não é exatamente conservadora, mas uma concepção religiosa da vida e do mundo: “Deus acima de tudo”.

Religiosos estão seguros – religiões sempre oferecem segurança – da precedência da sua crença sobre o pensamento científico. Eles creem de verdade que a ciência porta o mal nas entranhas das suas proposituras ou demonstrações.

O presidente eleito, portanto, deve imaginar serem dos bons deveres do governo a colocação de sua divindade e a de seus mandamentos acima das coisas todas, subordinando a eles os demais procedimentos governativos.

Ainda me reverbera desconfortável a sua proclamação de inspiração teocrática: “O Brasil não é um estado laico. É cristão. Quem não gostar que mude de país, porque a minoria deve ser curvar ante a maioria”.

Aliás, tal afirmação não mereceu qualquer reação política de republicanos laicos, que vêm minguando do Congresso, não obstante jamais se terem exposto, adotando um silêncio covarde diante de assaltos religiosos ao laicismo.

Resta que a bancada da Bíblia cresceu. No último pleito o PSL alcançou a segunda maior bancada da Câmara, com 52 parlamentares. A Frente Parlamentar Evangélica (FPE), agora, conta com 84 parlamentares filiados a 21 partidos.

O crescimento das bancadas conservadoras autoriza-lhes o devido esforço de cumprimento do prometido em campanha. Elas estão legitimadas para a propositura de projetos que legalizem religião como norma de Estado.

A resistência, pois, será ideológica. O próximo governo, que sabe muito bem o que quer, tem todas as condições de estabelecer a pauta. Sua intenção é a “recuperação” de valores. No atinente à Presidência, alguns exemplos.

Enem: “Para o ano que vem, pode ter certeza […] não vai (sic) ter questões dessa forma. Nós vamos tomar conhecimento da prova antes”. Há quem releve a “ameaça”, dado o sigilo da prova, Miguel Arroyo (UFMG), todavia, alerta:

“Bolsonaro tem como interferir no conteúdo sem olhar a prova antes, porque ele nomeia o ministro, o ministro coloca o presidente do Inep e o presidente do Inep tem o direito de mudar toda a equipe” (Itamar Melo, DC, 13nov18).

Itamaraty: “Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão.

A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem. […] Significa abrir-se para a presença de Deus na política” (Ernesto Henrique Araújo, ministro escolhido).

Escola sem Partido, após estupidezes da esquerda, “O caldo borbulhante de sandices fez seu caminho até os manuais escolares, os vestibulares, o Enem. No fim, originou uma reação destrutiva que pretende a escola em anexo do templo.

Sua verdadeira finalidade é aproveitar as vulnerabilidades para subordinar a escola a uma política ideológica e de costumes recrutada entre autoridades locais, políticos, promotores e pastores (Demétrio Magnoli, FSP, 17nov18).

Discurso de vitória: recém-eleito presidente, Bolsonaro, emergiu diante das câmaras de TV para oferecer ao povo seu pronunciamento. Mas… “passou a palavra a Magno Malta, pastor evangélico e praticante da chamada ‘velha política’.

Malta […] abriu a era Bolsonaro com dois minutos e meio de reza, na qual misturou, com fervor, Deus e política. ‘A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus. E o Senhor ungiu Jair Bolsonaro’” (Itamar Melo, DC, 01nov18).

O evangelho sobe a rampa: no ato público seguinte, Bolsonaro optou por um culto evangélico comandado pelo pastor e político Silas Malafaia. Na ocasião, referiu-se a si próprio como ‘escolhido’ do Senhor” (Itamar Melo, DC, 12nov16).

Pobre Luzia: queimada, sobrevivente, mulher. Bolsonaro e o deus dele desgostam de política de gênero. Luzia nasceu antes de todas as religiões. Nada sabe de Bolsonaro nem de Bíblia, então. Mas os preceitos bíblicos a dizem culpada.

Aliás, para Luzia, a Bíblia é um livro perigoso, recheado de más recomendações sobre a mulher. Pespega-lhe culpa traiçoeira na origem e prescreve-lhe destino humilhante. Luzia, precisamos falar sobre teus riscos nesta República, mulher.

Suspeição de si mesmo, Marx, bolhas, eleições

No entendimento marxista, ideologia é uma construção ideal (formulação explicativa do mundo ou projeto de mundo) na qual o próprio autor não é capaz de reconhecer os condicionamentos históricos que a produziram; o idealizador não compreende tudo o que o levou a produzir as ideias que explicita.

Ainda conforme Karl Marx, na totalidade das formas de consciência social está contido o sistema geral de ideias que legitima as relações de poder existentes, levando a que não se perceba – devido às falsificações de percepção que a ideologia provoca – o estado de desvantagem em que se está nessas relações de poder.

Conforme penso, ideologia é um sistema de ideias historicamente produzidas, as quais são assumidas e sustentadas por grupos sociais; essas ideias explicam e justificam ao sujeito o mundo e o seu próprio lugar nele. Não há, pois, possibilidade de compreender o mundo senão por meio de uma ideologia.

Simplificando: de tudo o que acontece ao meu redor (conjunto de eventos que me envolvem, ideias, inclusive), vem a matéria com a qual é “montada” e “calibrada” a minha consciência (produzida historicamente). Com aquilo que me veio do mundo, então, eu penso o mundo, justifico-o e o reproduzo.
Tornando a Marx, outra palavra significante: crítica. Criticar é tomar consciência dos fundamentos dos fenômenos, da relação entre eles, das suas origens, dos seus efeitos; é compreender as subjacências de uma ideia ou de um evento histórico; é estudar o “por trás” dos acontecimentos do mundo e explicitá-lo.

Quem não sabe criticar a inserção da própria vida nos laços de poder que a envolvem é alienado. O alienado está no mundo sem conhecer e, logo, sem compreender os fatores sociais, políticos, econômicos, culturais (midiáticos, inclusive), que o condicionam e o levam a comportar-se da maneira que se comporta.

Aqui, um interrogante de possibilidade: alguém consegue fazer crítica de si mesmo, tendo em vista que ao criticar-se esse alguém usará a matéria de seu já constituído pensamento, o qual, evidentemente, está “contaminado” ideologicamente? Noutras palavras: alguém consegue atuar com imparcialidade na autocrítica?

Não creio. Ninguém se vai examinar e avaliar, nem com as minúcias necessárias, nem com a neutralidade “honesta”, nem com os valores que não sejam os já internalizados. A única coisa possível, nesse aspecto, é ter consciência de que jamais teremos total consciência dos motivos que nos afetam a consciência.

Em certa medida, pois, embora a palavra nos seja desagradável de aplicá-la a nós mesmos, das teorias ou práticas que nos concernem, alguma alienação incide no nosso pensar ou agir. Não damos conta do todo. Em algum grau somos envolvidos por afetos que nos dificultam ou até impedem de nos sabermos por inteiro.

Na linguagem jurídica há um termo: suspeição. Trata-se do receio motivado, suscetível de se opor a alguém que atue em um processo, de quem, pois, se deve esperarar imparcialidade, mas que não pode garanti-la, em razão de conjunturas ou interesses intercorrentes que o prive de exação no exercício de suas funções.

Quer dizer, a pessoa pode ser honesta, mas, para avaliar algo que lhe seja atinente, está sob suspeição. Ademais, como todos estamos tocados por ideologia, o indivíduo honesto também o estará. Por fim, o sujeito pode se ter sob crítica, mas esta crítica será feita com conteúdos subjetivados, logo, suspeição. E tudo se repete.

Sobre tudo isso, as mídias sociais e seus algoritmos. Algoritmo: “conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas” (Houaiss). Traduzindo: as mídias sociais aproximam os iguais, formando grupos com interesses próximos denominados bolhas.

Os membros de uma bolha pensam que o todo do mundo midiático é a bolha dele. Só que não. O que sucede é que o “pensador” de uma bolha tem interface, com incentivo algorítmico, com outros partícipes da mesma bolha, então ele generaliza a “lógica” da sua bolha. Pare ele, fora da bolha vivem estranhos, suspeitos, inimigos.

Formam-se isolamentos ideológicos, resultando extremismo e paradoxos. Extremismo porque as ideias de um grupo não são ponderadas, referendando-se a si próprias de forma tautológica (reverberação de um conceito). Num contexto intelectual assim, o que não coincide com a reserva mental da bolha é desqualificado.

Paradoxo porque as bases que sustentam um fato por uma bolha não são aplicadas em fato equivalente se ele for do interesse de outra bolha. Então, o discurso contra a corrupção, por exemplo, é o mesmo em qualquer bolha, contudo, se o corrupto for da “minha” bolha, ele será menos corrupto do que o corrupto da bolha alheia.

Nisso, se justifica qualquer absurdo. Se o absurdo não tem alicerce, criam-se fake news. Bolhas não solicitam provas, não recomendam sensatez. Bolhas requerem viseiras, ou seletividade no olhar os acontecimentos. Eis o nosso momento político. Cada bolha se assegura com a sua bolha que a outra bolha não presta.

Sugiro: bota-te a ti e à tua bolha em suspeição. Critica a tua formatação ideológica. Há tu e as tuas idealizações. Há, contudo, outras concepções da vida. Sai da bolha, de qualquer bolha e vai para rua persuadir pessoas, legitimar ideias, catar votos para as futuras eleições. Karl Marx avaliza a sugestão.

Perdemos, acabou, talvez na próxima

A relevância de formar resistência a Bolsonaro, eleito presidente da República, está, em linguagem jurídica, na esfera do jus sperniandi. A expressão se aplica para galhofar vencidos nos tribunais que recorrem insistentemente.

Quem assim procede, converte inconformismo razoável em estorvo ao funcionamento do Poder Judiciário. O exercício do jus sperniandi, pois, tem um limite que a parte, mesmo legítima para o usar, deve perceber.

Passadas as fronteiras do razoável, insistir no uso do direito de espernear será abuso do próprio direito. O retardamento da aceitação de derrota definitiva é uma manobra especiosa. Não deve ser tolerada.

Em política democrática, dadas as regras do jogo, as partes contenderão dentro delas. Mais assim será se os envolvidos legitimam pelo procedimento, sobretudo pela sua participação, os termos da disputa.

Há, contudo, quem ainda não perdeu a eleição para a Presidência. Bobagem. Os que nos posicionamos contra Bolsonaro fomos derrotados. Não temos o direito de, pretextando resistência, atentar contra o “combinado”.

Se os derrotados nos mantivermos em injustificada desconformidade com o resultado eleitoral, estaremos em litigância de má fé, traindo o contrato constitucional, tentando contornar a soberana vontade popular.

A deslealdade será para com o povo, tão referido quando a sua decisão coincide com a nossa. Ora, quem ganha, leva. Recusar, por capricho, o resultado eleitoral é uma questão de natureza psicológica diante da vida.

Na irresignação com a vitória do Outro está embutido um autoritário. Se censurávamos Bolsonaro quando ele arrostava a democracia, dizendo que só reconheceria a própria vitória, não nos é lícito proceder do mesmo modo.

O dedo acusatório de antidemocrático que lhe apontávamos quando ele suspeitava do processo eleitoral, urnas inclusive, deve agora ser dirigido, por quem não sabe perder, precisamente aos que não sabem perder.

Posar de democrata quando vitorioso, é fácil. Importa ser democrata na derrota. A possibilidade de derrota é pressuposto do jogo. Quem esteve no certame contando apenas com a vitória esteve no lugar errado.

Então, dados os fatos, silêncio? Nada disso. Deve ser exercida oposição, mas ao governo, quando e se ele errar. A oposição sistemática, por mera desforra, sempre foi e sempre será um desserviço à vida em comum.

Está claro que cabe preocupação com os destinos das liberdades públicas. Afinal, o pior em Bolsonaro é a sua credibilidade. Significo: ele tentará, por honesta convicção, implementar as absurdidades que profere.

Suponho que durante os anos de seu mandato o conservadorismo pautará a produção legislativa, o autoritarismo dará forma e conteúdo ao que emanar do Palácio do Planalto, haverá orações nos recintos institucionais.

Mas não foi bem isso que ele disse que faria? E não foi isso mesmo que esteve nas “razões” deliberativas do voto de seus eleitores? Então, quanto mais coerente for Bolsonaro, pior. E o pior é que ele parece coerente.

Bem, esse modo de pensar e ser nos venceu. Agora, se os derrotados procedermos igualmente com coerência, devemos principiar com as contas: o que, no nosso fazer e não fazer, contribuiu com a vitória de Bolsonaro?

Não se cuida de localizar culpado. Que a História os indigite. Mas sabemos que há responsabilidades em mandos e desmandos que são fatores conducentes aos, para a minoria, tristes, mas encerrados, resultados eleitorais.

As variáveis incidentes na vitória de Bolsonaro são identificáveis. A primeira, talvez a mais importante, é o crescimento político das igrejas evangélicas. Isso deu-lhe a necessária base para articulação ideológica.

A segunda, a coragem de Bolsonaro de entrar em “bolas divididas”. Nossos políticos escapam de assuntos polêmicos. O Capitão, além de se posicionar nas polêmicas existentes, criou e se posicionou em mais algumas.

Isso forma torcida A torcida de Bolsonaro é personalíssima, assim como o foram as de Jânio Quadros, Fernando Collor e Lula da Silva. Temos tradição de culto incentivado à personalidade. Bolsonaro tem antecedentes.

Terceira, os governos petistas roubaram como “nunca antes na história deste país”. Roubo, ostentação, rastro. A exposição à execração pública do PT, tudo bem documentado, deu argumentos consistentes a Bolsonaro.

Quarta, a sempre dividida esquerda. “Todo mundo” sabia: Ciro era o candidato viável. Os interesses do Lula prevaleceram sobre as pesquisas. As chances ficaram fora do segundo turno. Perdemos. Acabou. Talvez na próxima.

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