sábado, 18 maio , 2024
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Léo Rosa de Andrade

As coisas escondidas

Os momentos emocionantes que nos envolvem nos propiciam revelarmo-nos a nós mesmos. Nessas ocasiões podemos nos surpreender com o que dizemos, fazemos ou calamos; em última instância, com quem somos.

Ainda que não nos reconheçamos ou até nos neguemos nesses instantes, como se estivéssemos desprovidos de responsabilidade, somos nós que estamos lá, inteiros e convictos da razão nos nossos dizeres, fazeres e calares.

Atos corajosos, omissões convenientes, covardias inconfessáveis. Belezas ou feiuras, o que perpetramos somos nós próprios em gesto ou omissão. E consequências. Quando ao cabo nos desgostamos, malditas consequências.

Mas o que se nos revela é o que somos. Eis-nos nas nossas coisas: nas vistas e nas escondidas. Nem mais nem menos do que nossos cometimentos. Nossas condutas são o que somos. Somos o ato, não a explicação.

O momento político foi emocionante, e nós, nele, nos emocionamos. É bom que façamos política, pensemos na gerência dos destinos do País com emoção. Alguns, contudo, passaram demais da conta. Perderam a razoabilidade.

Política, vida pública, há que se compenetrar. Muita gente, entretanto, encontrou-se desbussolada, soltou suas coisas de guardar escondidas. Elas só se vão dar em si lá bem depois da hora da persuasão civilizada do outro. Será tarde.

Nas contas tardias, as pessoas se justificam, manobrando pretextos para ver correção nos seus atos canalhas. Poucos purgarão vergonha. A maioria recolherá suas coisas feias até a próxima oportunidade de soltá-las contra alguém.

Dois ódios predominantes: os bolsonaros e os petistas. Ambos procederam como se seus oponentes não tivessem o direito de escolher posição. Insultaram o adversário como se sua opção contivesse intrinsecamente um mal.

Os bolsonaros cominaram a seus oponentes escolhas impatrióticas, depravação moral, defesa de bandidos, alianças internacionais suspeitas. Os petistas conferiram a seus antagonistas, ou equívoco, ou preconceito, ou fascismo.

É bem verdade que dentre os bolsonaros há uma banda exaltada boçal sem respeito por maneiras democráticas, direitos fundamentais, diversidade. Bolsonaro mesmo foi arauto inconsequente de um discurso ultraconservador.

Os petistas, que, aliás – é importante dizê-lo –, não formam o total do contingente que se opôs a Bolsonaro, posam de titulares cogentes do voto discernido. Falam e agem pretendendo que só um equivocado não votaria no PT.

Geralmente, a direita é saudosista de um passado conservador – Bolsonaro o é e o declara. O seu eleitor, todavia, está convicto que com a pureza de caráter e firmeza de princípios de seu candidato o Brasil será “regenerado”.

Bobagens. A Ditadura foi um horror. Durou enquanto era do interesse estadunidense. Ao cair, deixou um triste saldo de torturados, mortos, corrupção, desmandos, dívida social. E Bolsonaro, ainda bem, não vai “regenerar” nada.

Usualmente, a esquerda discursa para o futuro. O petismo discursou sobre o passado, mistificando seu tempo de governo, ludibriando com números que o próprio IBGE desmente (Dilma tentou impedir publicação de dados).

Ora, Haddad só logrou subir nas pesquisas acima dos 30% históricos do PT porque a oposição a Bolsonaro cerrou apoio a seu nome, como única alternativa, aliás. Mas um bom contingente que o apoiou não é petista de jeito algum.

O candidato, ademais, para granjear adesão, renegou petistas históricos, deixando, inclusive, de buscar conselhos com o “chefe” presidiário. No programa de governo fez mudanças sem as quais estaria fadado ao isolamento.

Aos petistas falta a humildade de quem teve o partido desbaratado sob a pecha de organização criminosa, com ex-presidentes e ex-tesoureiros na cadeia. Perseguição? Puro cinismo. Fato inconteste: bilhões foram recuperados.

As eleições nos trouxeram a um confronto. Poucas ideias, muitos insultos. O espírito do tempo não está bem. Muitos se apequenaram, expuseram suas coisas escondidas, essas que na vida cotidiana têm vergonha de assumir.

Não consigo atribuir superioridade aos modos insultuosos do autoritário de esquerda tão só porque certa esquerda se sente com licenças que a posição de esquerda lhe concederia. Licenças que não tem, nem deveria querer ter.

Tais e quais os jeitos da direita. A direita não tem que ser brutal, ainda que a história da direita brasileira seja truculenta. A esquerda que referi e a direita que aludo estiveram equivalentes no procedimento, e talvez se mereçam.

A sinistra exposição de coisas que devem ficar escondidas não está à altura da ideia de democracia representativa. Houve eleitores, eleições, candidatos. Ambos cumpriram as regras postas para o jogo; quem ganha leva.

É imperativo considerar que a vida política democrática pressupõe a derrota, mesmo para o adversário mais abominado. Não vale pensar que o resultado só é democrático quando vence o meu candidato. Aí, seria nomeação.

Fiz campanha e o mais que podia para derrotar Bolsonaro. E votei contra. Não foi voto no Haddad. foi voto contra certa mentalidade. Bolsonaro ganhou. Fico triste, mas, democraticamente, eu o reconheço presidente do Brasil.

Etecetera, gerúndio, voto perdido contra certa mentalidade

“Inês é morta.” Pranteemo-la na Quinta das Lágrimas. Bela história, a de Inês de Castro: chega um tempo em que a coisa está acabada. Nada a fazer. Consternar-se diante de fatos não faz com que fatos, fatos não sejam.

Acode-me o meu primo, o Guimarães: “Viver é um descuido prosseguido”. É verdade; nos descuidamos dos destinos do País. Gentil, ele emenda: Mas, também, “viver é etecetera”. Um tropeço do tamanho do Brasil, mas a vida segue. Essa eleição é favas contadas. Alguns perdemos. Gosto da companhia de boa parte dos que estão na derrota. Do jeito do “primo” Doutel de Andrade: “A Ditadura nos derrubou; caímos. Mas caímos na vertical”.

Em mim, a esperança jamais é última que morre. Antes, mato-a eu mesmo, e dou socorro à sensatez. A eleição para a Presidência da República será ganha por um tipo de mentalidade. A pensar: de que lugar ideológico veio isso? Psicanalista que conheço tem sua teoria. Teoria equivocada. A massa ignara, em desamparo carece do pai que ponha ordem. Quer um pai severo. Prefere entregar-lhe as liberdades públicas na esperança de sua segurança individual. Rebato: referida massa votou noutro pai por quatro vezes seguidas, concedeu a outro partido dezesseis anos contínuos de mandato. O pai concessivo de então teve toda a confiança que se pode depositar em algum político. E então?

E mais: o pai concessivo passou o poder a uma mãe fálica, mandona, dita gerente. Essa mesma, a mãe, também foi referida como condescendente: o pai deixava o País nas mãos da “mãe dos pobres” (nas falas de Lula da Silva).

E rebato ainda. A coisa, se formos psicanalisar, é mais complexa: a mãe não era fálica, não sabia gerenciar, não era mãe de pobre nenhum. Era incompetente. Acabou defenestrada. Não deixou saudades (nem se elegeu senadora).

Sem pai, sem mãe. Pai substituto (Temer, o sócio do PT). Um pai sem legitimidade paterna. Um pai acuado. Eleições: estamos nas angústias da espera pelo pai que vai chegar e nos cuidará. Uns querem o pai qual; outros, o pai tal.

Vai ganhar o pai qual. O nome dele é Bolsonaro. Não o quero. Pelo que ouvi dele mesmo, o sujeito não respeita mãe, filha, empregada. Vizinhos e amigos, só se feitos à cara e à semelhança de suas próprias ideias. Não me convém.

Então eu queria o futuro derrotado pai tal? Não. Nada. Dele mesmo, até que gosto. Por identificação. Tem os estudos que tenho, fala a língua que falo, pensa muitos de pensamentos iguais aos meus. O problema é a turma dele. O mais da turma dele me vale pouco ou quase nada. Há suspeitos, há até presidiários. É que muitos dessa turma se organizaram em quadrilha e aparelharam o Estado. Essa gente que refiro roubou e deixou roubar demais do Brasil. E agora? Agora, queira eu, ou queira eu não, alguém vai governar a casa. Quando bater a hora da urna (eletrônica e segura), vou ter que escolher. Eu e todo mundo. Outra vez, pensando com algum referencial de psicanálise.

Hora de escolha: País violento, desgosto, roubo, desilusão. Angústias de não saber no que vai dar. Algazarra de insistir que venha o pai que atenda à minha vontade. Muitos – gritos assustados – querem infligir sua vontade. Ansiedade. Cara!, não há alternativa; vou de Haddad. Voto no derrotado. Os impropérios que já ouço: “vai votar em ladrão”. Não. Aliás, contra Haddad não há nada que lhe desabone a biografia. Nada, a não ser as más companhias, claro. Mas, ora, de toda sorte não comporta reclamação do meu voto. É voto derrotado. É voto de votante que vota contra uma certa mentalidade. As coisas que Bolsonaro diz, nem sei se pensa. Só daria para saber em análise ou em ato. Não quero, já não importa. Questão de ética, questão de estética (protesto de Laertes Rebelo). Civilização. É disso que se trata. Sei, repito: a outra turma é larápia. Respondo: a Polícia, o MP, a Justiça… Estão dando conta.

Já “o que Bolsonaro significa transcende as eleições. É questão de valor, de princípio, de humanidade” (Karine Gomes Vieira). Seja: de larápio petista cuida o Código Penal; Bolsonaro afronta a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Reitero, pois que bem elucidar o tema é o meu desiderato: “A corrupção petista pode ser combatida com a lei, mas o retrocesso em relação a Direitos Fundamentais que Bolsonaro representa não se restabelecerá por lei” (Alice Bianchini). Então, sumário: não votarei a favor de nada, muito menos do PT. Votarei contra certa mentalidade (Gresiela Nunes da Rosa). Não aprecio derrota; vou lá sabendo que serei derrotado. Ademais, a derrota já me ocorreu no primeiro turno.

No segundo, reitero: vou apenas votar contra. Cuida de ser o voto contra mais cívico que eu vou dar na vida. A psicanálise não trata disso. É política pura; é tudo que política significa. Ah!, me ocorre: tempo de medo.

Riobaldo, cria de Guimarães Rosa, o “primo”: “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houve no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero: é que ninguém tem o direito de fazer medo de mim”. Recomendo muito: Grande Sertão: veredas. “O contagioso”. Isso pega, alcança entes queridos. Maíra Zimmermann de Andrade: “Que fazer? Interpelar o outro com minhas concepções”? A onda, filme: os alunos formam uma autocracia, os professores não sabem o que fazer.

É… a psicanálise tem razão, Freud: mal-estar na civilização, psicologia das massas… Voto por medo de um tempo que dava medo: um discurso que evoca violência catalisa eleitores. Mas, eu que sou eu, não me vou esconder de mim.

Então, vou dizer contra Bolsonaro com meu derrotado voto. Eu já pensava antes de ler meu “primo”: a vida é gerúndio, anda. De particípio, só a morte. Mas, aí, não adianta: Inês é morta. Eu não. Protesto. Voto contra. Isso eu posso e faço.

Meu voto: não o dou por gosto, mas por valores a preservar

Pensar o tempo presente não é tarefa simples. Estamos nele, estamos implicados por ele. Sendo impossível o afastamento histórico para alcançar alguma objetividade, há que se decidir atravessado por conteúdos ideológicos em pleno vigor.

Ideologia é a matéria do pensamento. Ninguém alcança a condição de a-ideológico, ou de não ideológico, dado que ideologia, no sentido dicionarizado de ideário, é exatamente a compreensão e explicação de mundo que se tem.

Já se creu em neutralidade, como se o sujeito que pensa e explica um acontecimento pudesse fazê-lo com isenção. Bobagem! Nós entendemos os fatos a partir de “modos” de pensar previamente instalados em nossas cabeças.

Assim, quando alguém julga e atua, na vida privada ou pública, fá-lo sempre a partir de “suas” concepções de mundo, de valores internalizados, ou inscritos no seu corpo. Cada qual mede com um metro muito particular de medir as coisas.

De onde vêm os elementos valorativos que estão em mim e com os quais eu penso e explico o mundo, aferindo eventos e decidindo sobre eles? Eles me vêm de discursos que estão em circulação e que de algum modo me alcançaram.

Discursos formam amarrações sociais. Todo grupo social produz discursos que se tornam elementos de união, elaborando laços identitários. Se não existir amarração social, não existe cultura. Agora, que discursos nos têm alcançado?

Discursos são sempre oriundos de um lugar de poder. Na presente eleição dois sistemas de discurso político lograram condições suficientes para obter posição de disputar a Presidência da República em segundo turno.

O lulopetismo e o bolsonarismo é o que temos como opção. São as alternativas. A escolha de não escolher, sem ilusão, é uma ilusão. Seja: não escolher é também uma escolha. É a mais covarde decisão que alguém pode tomar.

Pode-se escolher por eleição do melhor, pode-se decidir por exclusão do pior. Pode-se declarar com asco de tudo isso que está aí a anulação do voto, ou o voto em branco; pode-se, mas não se deve. A cidadania pede presença e compromisso.

Que é ideologicamente o lulopetismo? A meu ver é uma conjunção das comunidades eclesiais de base, o chamado catolicismo de esquerda (sim, um contrassenso), do sindicalismo de Lula e do stalinismo de José Dirceu.

Durante quatro décadas o Partido dos Trabalhadores se fez catalizador de diversas tendências, com proeminência dessas três correntes, e vendeu ao Brasil um idealismo que o desqualificaria conceitualmente como organização esquerdista.

Atropelando o conceito, o PT se faz acreditar e é havido como a principal sigla partidária de esquerda que temos. Tenho outra consideração: o petismo instalou-se e se manteve fundado em mistificação e ladroagem.

Quanto à mistificação, exemplifico com o seu tão repetido discurso de inclusão. Em 2012 o governo petista redefiniu a classe média, considerando que a ela pertencem indivíduos com renda entre R$ 291,00 e R$ 1.119,00.

Com uma manobra contábil que meramente redefinia pisos de renda, o petismo “tirou” da pobreza milhares de brasileiros. Só que não. Ainda que em outra classificação estatística, os brasileiros “elevados” não elevaram ganhos.

Quanto a roubar, é verdade que no Brasil a tradição de apropriar-se do erário é muito mais antiga do que o PT. Mais antiga e não menos danosa, talvez. Qual a diferença? Por que a condenação legal e moral mais incisiva ao petismo?

O PT organizou a corrupção e fez dela política de Estado. Os cargos de governo foram distribuídos conforme a intenção de roubo. Capturou-se o Congresso. Os altos cargos da República foram postos na folha de pagamento de empreiteiras.

Que é o bolsonarismo? É o cristianismo fundamentalista feito discurso (e prática) circulante. As igrejas cristãs pentecostais e o catolicismo retrógrado são os maiores produtores de discurso do Brasil. Bolsonaro catalisou esse “pensamento”.

Crença bimilenar, capacidade midiática única, potência econômica invejável, crescimento político avassalador. Tudo isso fornece estofo para as falas de Bolsonaro: ordem patriarcal, moral purificada, “deus” acima de tudo.

Meus valores são outros. A História é produzida pela Humanidade, a Humanidade tem que dar conta de si. O Renascimento inventou o humano moderno, o Iluminismo o consolidou. O humano moderno declarou direitos à Humanidade.

Não quero e nem saberia abrir mão desses valores que me alcançaram e que me constituíram laico, democrático e republicano. Tudo em mim tem posição consolidada contra valores medievais. Vivi a vida em contraposição a eles.

Ademais disso, seu rotundo desapreço a preceitos caros à democracia: Bolsonaro valoriza a Ditadura de 1964, prestigiando seus piores facínoras; desconsidera a importância do Congresso Nacional; insulta o Judiciário.

Em enfrentamentos com policiais, defende pena de morte por decisão sumária; afronta as lutas por diversidade; ofende as conquistas de gênero; não alcança a compreensão do que seja direito de minoria; prega a violência como método.

Então vou votar em ladrão? O PT chafurdou em corrupção. Tudo está aí aos olhos de quem queira ver. Trata-se de coisa documentada. De Haddad, candidato alternativo a Bolsonaro, contudo, não se pode dizer que seja corrupto.

E quanto à quadrilha? A agremiação lulopetista, afinal, foi indigitada de organização criminosa ladravaz por ninguém menos do que o ministro Joaquim Barbosa, munido de provas incontroversas. Como vou justificar meu voto?

Pelo mal menor. Os erros partidários, os desvios de dinheiro público, as malversações protetivas dos “companheiros”, de tudo isso a Polícia, o MP e Justiça têm dado conta. Não é coisa pouca a rapina, mas está submetida ao Estado de Direito.

O Estado de Direito sob os valores do bolsonarismo, entretanto, estão ameaçados. As conquistas da Tradição Ocidental, que nem bem se assentaram no Brasil, estão sob discurso cerrado de crenças de antanho, de crenças do atraso.

Não é do meu jeito me omitir. Tenho que votar. Vou votar. O meu voto não será por gosto, mas trata-se, antes, de ser uma recusa. Eu recuso Bolsonaro e o tanto e quanto ele significa. Antes de tudo, aliás, Bolsonaro não significa a mim.

De novidade, só as mulheres

Não obstante os excessos, gostei das ocorrências. Desta quadra política em que tanto e com tanta animosidade se polemizou sobre valores que aceitamos ou recusamos no Brasil, creio que se definiram e restarão quatro causas.

Jamais havia visto nossos traços culturais, ideológicos e morais serem solavancados o quanto o foram durante os embates acontecidos no correr desta erriçada campanha eleitoral para a Presidência da República.

Tudo isso exalta concepções valorativas da vida em comum e nos diz a nós mesmos quem somos. Se dependêssemos dos dois grupos mais dispostos à belicosidade, os bolsonaros e os lulopetistas, teríamos padrão único: o deles.

A relação entre esses sectários deu-se na base do “calaboca seu fascista”, ou “calaboca seu esquerdista”. Agiram como quem se considera detentor dos padrões éticos do “Bem”, os quais os brasileiros deveríamos cumprir.

Quanto às causas, ou o móvel dos atos aos quais assistimos, nos envolvendo ou não, referi que se nos destacaram quatro, os conjuntos de princípios que se delinearam durante a campanha eleitoral, e creio que restarão estabelecidos.

Um, a causa feminina (não diria feminista): a posição das mulheres foi catalisada pelo rechaço a Bolsonaro. As manifestações, seja pelo significado, seja pela amplitude, seja pela reação, seja pelo resultado, são uma marca histórica.

O movimento significa mais do que a rejeição a um candidato. Ele marca uma posição, delimita o que as mulheres não estão dispostas a aceitar, sobretudo como retrocesso a conquistas que se estabeleceram, ainda que tantas o aceitem.

As mulheres perceberam que, em se pondo a falar, seguramente se fazem ouvir. Elas se fizeram, nesta conjuntura, autoras da própria causa. Suponho que nunca mais decisões políticas serão tomadas sem sua efetiva participação.

Dois, os lulopetistas: o que nasceu de uma generalidade “contra o sistema” (daí sua importância de contradiscurso social) acabou como um aparelho corrupto, seja por roubo típico, seja por cooptação de camadas sociais influentes.

O petismo “organizou” a corrupção brasileira, fazendo-a política de Estado. A coisa foi a tal ponto que a maior parte dos componentes de seus governos foi posta na folha de pagamento das empreiteiras de obras públicas.

Esta esquerda que tenho por direita cultuará a personalidade de seu líder, repetirá mantras contra o neocapitalismo, glamorizará o chavismo, terá o apoio dos servidores públicos que costumam do público se servir. Sobreviverá forte.

Três, os bolsonaros: é a mentalidade obsolescente do Brasil. Aí está a moral religiosa, o rancor de classe (mesmo entre pobres), a nostalgia da ordem autoritária, a tradição moralista, as hierarquias sociais. Enfim, os “bons” costumes.

Bolsonaro tornou-se a solução dessas aspirações. Como se trata de um maniqueísmo que promete sincretizar a vida pública nas fórmulas de suas patriotadas, não é difícil entendê-lo e, então, fazê-lo “a saída extrema” para o Brasil.

Quem alcança contentamento em rasgos de valentia, em promessas de solução final, em “autoridade”, digamos, patriarcal, achou em Bolsonaro o que procurou em Jânio Quadros, na Ditadura de 64, talvez no “pai” que lhe faltou.

O bolsonarismo vai articular-se, formar partido, estabelecer-se em definitivo na nossa vida pública. Se a direita mundial está recrudescendo (com outros sintomas), aqui ela está, apenas, se evidenciando num reencontro consigo mesma.

Quatro, os de sempre: “Se há governo, sou contra”. Entre nós, inverteu-se a máxima de cariz anarquista: “Se há governo, qualquer governo, sou a favor”. Certos políticos saberão sempre se insinuar pelos palácios governamentais.

Tais políticos não são, entretanto, massa de manobra. Antes, pelo contrário, dão jeito de agenciar governantes, à direita ou à esquerda. Ninguém está inocente dessa gente que compõe com quem quer que tenha a “caneta” na mão.

Mas, sem inocência: composição tem reciprocidade. Referidos políticos compõem com qualquer governante, mas, qualquer governante, ponha-se sob o matiz ideológico que se venha a pôr, tem composto com referidos políticos.

É o que temos, é o que somos. De novidade, as mulheres, que, comprometidas com suas liberdades, reagiram ao machismo bolsonarista, não obstante as tantas delas que se alinharam ao que Bolsonaro ostensivamente significa.

No segundo turno, bem… O segundo turno será o a confirmação do bolsonarismo, que se vai estabelecer, e a “raspa” das sobras do lulopetismo, reduzido às suas condições iniciais. Quem ganhar não terá base de apoio, terá que negociar.

Mulheres, e o Legislativo?

Nada! Nas discussões sobre os poderes da República, coisa nenhuma se diz dos candidatos ao Senado ou à Câmara dos Deputados. Todas as energias centraram-se na disputa pela Presidência, como se mais não houvesse.

Há, entretanto. E o Legislativo – Câmara Alta e Câmara Baixa – tem importância equivalente à da Presidência. Todos sabemos, mas, talvez pela emoção da disputa presidencial, não estejamos levando assaz em conta o poder de legislar.

O Legislativo brasileiro tem sido campo de uma disputa ideológica importante. Grupos conservadores, alcunhados BBB, têm se articulado e abiscoitado cada vez mais cadeiras, sobretudo na Câmara dos Deputados.

Bíblia, Boi, Bala, ou Religião, Ruralismo, Repressão. Comunicados por interesses que representam retrocessos em direitos e garantias sociais e nos costumes, essa frente conservadora formou uma aliança ideológica bastante ativa.

Usualmente os políticos que a compõem discursam, atuam e votam em conjunto, com pauta que banca moralismo e retrocesso, derrotando propostas que significam avanços, lutando para reverter conquistas assentadas.

Defendem a família restrita, a redução da maioridade penal, a relativização do direito dos indígenas a seu território, a mitigação da descriminalização do aborto, mesmo em caso de estupro, a imposição de princípios religiosos.

Não há Estado laico para a BBB, então, para os congressistas que a compõem, vale aula de religião, controle do corpo da mulher que “peca”, cura gay, o que seja que lhes pareça que deus lhes “orientou” a votar contra ou favor.

Não almejam o apaziguamento social, pedem uma mão repressora que oprima física e simbolicamente, que imponha ordem a todo custo, muitos justificando execuções sumárias de suspeitos com a máxima “bandido bom é bandido morto”.

De fato, há senadores e deputados que se elegem com esses discursos, que legislam fundados em discursos tais quais esses. Sim, há parlamentares que, honestamente até, acreditam que esses discursos são o melhor para o Brasil.

Religiosos e autoritários, regra geral, não aceitam a diversidade humana, os conflitos de classe, as variadas compreensões de mundo. Querem um humano padronizado, enquadrado nos “bons” costumes, socialmente hierarquizado.

A moldura tacanha em que os conservadores desejam manter a Sociedade, forçando como paradigma os costumes herdados de um patriarcado que já não cabe, atenta, sobretudo, contra a liberdade que as mulheres conquistaram.

Por sua condição insuspeita, trago dados da Exame (https://abr.ai/2McAu7V). Colho da matéria Bíblia, boi e bala: um raio-x das bancadas da Câmara alguns dados. “Para mostrar quais parlamentares defendem quais interesses, a Pública levantou a composição de onze das bancadas mais atuantes.

Além dos ruralistas, que contam com 207 deputados, mapeamos outras gigantes da Câmara: a evangélica (197), a empresarial (208), a das empreiteiras e construtoras (226) e a dos parentes (238), o maior agrupamento da Casa – confirmando a tendência de aumento do número de deputados com familiares políticos.

Adicionamos ainda as bancadas da mineração e da bola, respectivamente com 23 e 14 deputados federais. Também pequenas mas igualmente fortes, pelo teor dos conteúdos que defendem, mapeamos a composição das bancadas da bala (35), dos direitos humanos (23) e da saúde (21)”.

A Frente Parlamentar da Agropecuária, os ruralistas, detém 40% da Câmara. Ela tem viés radicalmente conservador e, em alguns casos, postula seus interesses com tons de ódio, no entender da publicação.

As bancadas da bala e da Bíblia, que efetivamente correm juntas, somadas, alcançam 45,5% da Câmara. Defendem a redução da maioridade penal, o aumento de penas e, principalmente, a revisão do Estatuto do Desarmamento.

Exame destaca ainda, e nesse destaque está o “argumento” com o qual objetivo sensibilizar as mulheres: “Pequenos, mas aguerridos: Diametralmente oposta às bancadas da Bíblia e da bala, está a turma dos direitos humanos.

Apesar do reduzido número de deputados que militam diariamente no combate da opressão às mulheres, à população LGBT, aos índios e populações tradicionais, do racismo e da violência estatal, a mobilização de setores da sociedade e da militância de causas específicas rendeu-lhes algumas vitórias parciais importantes ao longo dos últimos anos, mesmo com somente 23 parlamentares no seu núcleo duro”.

Eis o cerne da questão: deputados que têm agenda com pauta avançada, que têm comportamento congressual avançado, que têm ideologia e trajetória política avançadas. Eles existem e são identificáveis pelas suas votações.

É imperioso que as mulheres se preocupem com o Legislativo. É lá que se debatem temas essenciais para as liberdades públicas. E lá que se engendram legislações libertárias, cruciais para a agenda do feminismo.

Políticos aguerridos também carecem de voto, ou já não estarão no Parlamento. A histórica campanha que as mulheres lideram contra o atraso deve ser completada com o amparo eleitoral aos que auxiliam a construir um melhor futuro.

As mulheres, o voto em Bolsonaro

Mulheres que votam no Bolsonaro? Com este título, Vera Iaconelli publica artigo na Folha de São Paulo (11set18), indagando sobre a razão que motivaria uma mulher a sufragar Jair Messias Bolsonaro presidente da República.

“Por que votariam em um homem que não perde a oportunidade de desrespeitá-las?”, é a questão a que se propõe responder. Então, no “debate das ideias”, põe-se a refletir “sobre o lugar das eleitoras na votação que se aproxima”.

Exemplifica sua tese lembrando a naturalização da violência contra as mulheres em culturas que a praticam generalizadamente, levando-as a considerar agressões não como insulto a direitos, mas como mero fato desagradável.

Aponta a normalização do mau hábito de culpar a vítima pelo abuso de que padeça. Lembra que “o sofrimento, para ser legitimado, requer o reconhecimento social”. Eu acrescentaria: “e a desvalorização pública do ato abusivo”.

Iaconelli lembra que padecimento pessoal em situações de vulnerabilidade explorada “não é um dado puro”. Então, “existem coisas sobre as quais nos parece legítimo reclamar e outras que supomos serem ‘mimimi’”.

Aduz que nem agressores, nem agredidos percebem a gravidade da situação. Assim as mulheres, sem indagar sua condição, embora sofram as consequências, acabam compactuando com a desvalorização a que são submetidas.

A saída é “se reconhecer primeiro como cidadã de plenos direitos e como ser humano, acima do gênero, raça ou condição social, para ser capaz de reivindicar o tratamento dado aos que são considerados cidadãos de primeira classe”.

Não, contudo, para todas. Há um enredamento: “Seja pela falta de segurança, pela proteção dos filhos, pela precariedade das condições de existência, por vergonha, poucas conseguem denunciar publicamente a violência”.

Ainda um ponto impede que a mulher se desvencilhe das peias culturais: “acreditarem que merecem esse tratamento, por se identificarem com o discurso do agressor”. Por serem mulheres, merecem que se lhes retire sua humanidade”.

Até aqui adoto o texto de Vera Iaconelli. Depois, a meu ver, é articulada uma generalização que não tem cabimento. A autora acachapa todas as mulheres que votam em Bolsonaro numa única condição. Palavras dela:

“Assim como as mulheres descritas acima […] as eleitoras de Bolsonaro também não reconhecem a desvalorização a que estão submetidas. Para elas, o candidato as valoriza como elas estão habituadas a serem valorizadas”.

“Não há diferença entre o que ele fala e o que elas realmente pensam de si: que são culpadas [pelas violências que sofrem]. Sendo assim, encontram no candidato a opção ideal que representa o que pensam sobre si mesmas”.
Ao final, o artigo intenta desqualificar as eleitoras de Bolsonaro, reunindo-as todas como submissas, retiradas da condição de pensadoras autônomas, equivocadas necessárias, portanto, quanto ao fundamento da sua escolha.

Isso não é verdade. Por exemplo, “Mulheres com Bolsonaro tem mais de 300 mil membros no Facebook”, e, segundo uma das moderadoras do grupo, Raquel Codá, ‘A gente é a favor da direita conservadora e da política militar.

Em resposta ao grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, que atingiu 1milhão de participantes […] neste 12set18, foi criado há dois dias o grupo Mulheres com Bolsonaro#17 (oficial) em apoio ao candidato do PSL.

Com o Bolsonaro vai melhorar muito a segurança e as leis vão ficar mais firmes’, disse Raquel. A movimentação pró-Bolsonaro começou com a página do Facebook Damas de ferro” (Naiara Albuquerque, Exame, 14set18).

Não faltam mulheres nas organizações antipetismo. Há grupos no Facebook em que se encontram matérias bem escritas por mulheres, protestando contra o que chamam de venezualização ou cubanização do Brasil.

Há organizações de mulheres cristãs que têm pautas contra o aborto, contra política nas escolas, contra casamento gay, contra comunismo. Há outras contra a corrupção, contra a violência social, contra a desordem nas escolas.

Dei-me à pachorra de procurar e contar no Facebook os grupos contra e os com Bolsonaro. Há 98 que se declaram contra, mas há 96 que se dizem a favor. Nuns e noutros estão muito bem explicitadas suas “causas”.

Minha conclusão é de que não há muita vulnerabilidade nos grupos. Muitas das contra Bolsonaro em verdade são lulistas, apenas. Já as a favor do Capitão são, em verdade, mais bolsonaras do que alienadas e submetidas, manipuladas.

Conservadorismo não tem sexo. As bolsonaras não são mulheres submissas a um líder mandão. Nada. Infelizmente, são ativas defensoras dos autoritarismos, dos privilégios, dos preconceitos que maleficiam o Brasil.

As eleições, as sedutoras falas do senso comum

Nossas relações sociais nos ofertam um senso comum, que é o “conjunto de opiniões, ideias e concepções que, prevalecendo em um determinado contexto social, se impõem como naturais e necessárias” (Houaiss).

Todo pensamento é constituído pelo que lhe advém do senso comum. São ideias que nos são transmitidas por relações de poder, naturalizadas pela sua generalização e valoradas por discursos que as portam e as fazem circular.

Contudo, pelos tempos e regiões, opiniões naturais e necessárias divergem. Isso nos ensina que valores são relativos. Bem, não obstante relativos, há valores que vêm sendo universalizados, ou feitos absolutos.

São os conceitos iluministas inscritos pelos franceses na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, inspiração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948.

Esse elenco de valores responsabiliza a cada um e a todos os humanos pela condição da humanidade e estabelece o patamar mínimo do civilizado. Eis um monumento civilizatório infelizmente não suficientemente assentado.

A França e os EUA são os artífices e fiadores morais da proposta. Ambos os países adotaram a república como forma de governo por entenderem-na como a mais concernente com o regime democrático.

Nós adotamos os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos pretendemos democráticos e nos organizamos como república. Nunca alcançamos, todavia, o bastante, os valores democráticos e republicanos.

Os Direitos Humanos foram capturados por grupos religiosos militantes. No lugar de investirmos na sua valoração, convertemo-lo em bandeira de apoio acrítico “às vítimas do sistema” e em libelo contra membros das forças policiais.

Esse marco da História do Ocidente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é discursado, no Brasil, como capítulo constitutivo de ódios: “Bandido bom é bandido morto”, “Todo policial é assassino de pobre”.

Nossa democracia jamais sepultou a República Velha. Somos um continuado acordo de elites. À direita e à esquerda, os governantes se compuseram, não ousaram entrar em “bola dividida”. Os banqueiros que o digam.

Quanto à república, não toleramos o institucional. Aceitamos a instituição na medida, apenas, em que suas decisões coincidem com nossa interesseira posição pessoal. O STF é o exemplo mais acabado dessa nossa concepção.

O Supremo é abominado pela direita quando decide por avanços sociais ou quando concede Habeas Corpus a um político de esquerda. A direita o louva quando um larápio de esquerda recebe condenação e cadeia.

O mesmo Tribunal é execrado pela esquerda quando mantém em cárcere um prócer de suas fileiras. Contudo, a mesma esquerda mantêm-se em loquaz silêncio se o réu for um oponente pertencente às linhas da direita.

Valesse-nos o institucional, pediríamos por conceitos, não pleitearíamos fundados em culto à personalidade. Se por Justiça coubesse liberdade a Lula, caberia a Cunha, a Maluf, aos demais em mesma situação jurídica, pois não?

Ao nível elevado que as formas persuasivas e consensuais solicitadas pelo moderno “contrato social”, nós respondemos com os nossos modos coxinha versus mortadela de ser: insultos ao adversário, já feito inimigo.

É eleição. Qual dos discursos circulantes te alcançou? Todo discurso que circula é originário de um grupo poderoso suficiente para pô-lo em circulação. De que grupo de poder emana o discurso que te afeta e te compromete?

Serias um coxinha convencido de que o Bolsonaro vai resolver o Brasil no grito ou na bala? Serias um mortadela convencido de que o Lula é perseguido pelo Tribunal cujos membros ele mesmo nomeou? Terias asco de tudo isso?

Esses três discursos são os mais propagados. Estratégias de produção e tecnologias de disseminação de discurso conseguiram alcançar a maior parte da população, abduzindo-as aos interesses estabelecidos. Supera isso.

Olha, afere a história e as falas do teu candidato: que sentido fazem-lhe os Direitos Humanos; o quanto ele respeita à vida em comum pacífica; que valor ele confere às instituições. Na aferência, não usa o senso comum.

Nossa mentalidade, um voto racional, amém

Mil e quinhentos anos de domínio religioso cristão. Imobilidade intelectual, obstáculo à ciência, superstição como orientação da vida. Hierarquia social fundada na “vontade de deus”. A nobreza e clero no topo das relações de poder.

Os demais éramos nada, valíamos coisa nenhuma. Éramos plebe: classe social baixa. O plebeu era declarado e se reconhecia como destituído de distinção. Como vassalos, voltávamos a vida às homenagens ao suserano e à divindade.

Então, o Renascimento: no século XV, movimento intelectual que se espraia pela Europa. Preconizou a recuperação do pensamento greco-romano em contraposição à tradição medieval. Moveu artes, arquitetura, economia, política.

O Renascimento foi em grande parte reprimido pela Inquisição, aparelho jurídico católico justificado como controlador da “heresia”. Os inquisidores compunham um sistema de controle ideológico com poderes ilimitados.

Esses tribunais perduraram do século XII até o princípio do XIX. O Renascimento foi, pois, delimitado por um ambiente social em que se prendiam pessoas suspeitas de má católicas, torturando-as e assassinando-as com espetaculosidade.

Não obstante seus limites, a Renascença partejou o Iluminismo, movimento político-intelectual assinalado pela centralidade da ciência e da racionalidade. Primeiro a burguesia articulou-o, depois Napoleão o impôs à Europa.

O século XVIII deu partida à substituição da religião pela ciência, do arranjo social voltado à devoção a deus pela lógica da organização política, da indiferença à vida na Terra pela valorização da existência concreta do indivíduo.

Conceitos como Democracia, Estado, Direito, individualidade, cidadania passaram a fazer sentido. A vida em Sociedade já não seria a vontade da divindade (ou do clero), mas o resultado do Contrato Social efetivado politicamente.

As guerras napoleônicas foram saneadoras. Caiu Napoleão, ficou a laicidade. Nunca mais a Europa foi a mesma. Ocorre que a Península Ibérica, seja, Espanha e Portugal, jamais foi do interesse do Corso, salvo como geopolítica.

Os valores políticos prevalentes para espanhóis e portugueses seguiram torcidos por religiosidade, privilégios de nobreza, imobilidade social. Boa parte do pensado e praticado por aqui nos acontece por derivação dessa condição.

Senão, vejamos: estamos em fase de escolha dos gerentes do nosso Contrato Social. Se dermos crédito às mídias sociais, ficamos com a nítida impressão de que se deseja radical mudança nos quadros e formas de administrar o Brasil.

Mas, será que se não houver mudança na mentalidade do eleitor restará alteração nos quadros dirigentes do País, dado que os escolhidos decorrem diretamente do modo de pensar dos que têm direito a sufragar candidatos?

Eleitor é pobre e possui modestíssima escolaridade: “O extrato mais numeroso dos eleitores, que responde por 80% dos votantes, é composto de brasileiros que se situam entre a classe média baixa e os pobres.

Eles somam 93 milhões de pessoas [2002], um contingente maior que a maioria das democracias do mundo” (https://bit.ly/2LssfmS). Esses eleitores de modestas posses, educação e horizontes decidirão o destino comum da nação.

É grave: “Se o voto fosse facultativo no Brasil, os eleitores com idade entre 18 e 69 anos, que hoje são obrigados por lei a votar, se dividiram: uma metade se absteria e outra faria questão de votar” (https://bit.ly/2P5Yo5O).

Ademais, “o número de eleitores que não compareceram às urnas no segundo turno das eleições municipais [2016], somado aos votos brancos e nulos […] corresponde a 32,5% dos eleitores aptos a votar” (https://glo.bo/2eKocWm).

Tome-se em consideração que o voto é obrigatório, que da ausência imotivada do votante decorre pena e que, mais importante, os dados referem-se a pleitos locais, que implicam diretamente a vida do cidadão. É muita coisa.

A vida política que se volta ao Contrato Social nos interessa pouco; a ciência, ou a escolaridade, não é o nosso forte, a vida cívica não está no centro da preocupação do Brasileiro. A Idade Média ainda nos habita a imaginação.

“No Brasil, 79% da população afirma seguir uma religião, segundo pesquisa realizada em 65 países pela rede Worldwide Independente Network of Market Research (WIN), que no país teve parceria do instituto de pesquisa Ibope.

O índice representa oito em cada dez brasileiros e está acima da média da população mundial, que é de 63% de religiosos ou 6 em cada 10 pessoas, segundo a pesquisa” (https://glo.bo/2MVZTWY). Eis a base de nossos valores.

Supostamente por isso as pesquisas eleitorais indiquem a preferência, à esquerda, de um candidato que afirma que a cor da bandeira de seu partido é a do sangue de Jesus, e à direita, que declara deus acima de tudo.

A mentalidade da Idade Média confia o cotidiano à vontade divina: deus proverá. Para a racionalidade Iluminista, a humanidade terá o tanto que a humanidade providenciar. No nosso caso, que deus providencie um voto racional. Amém.

As eleições, os candidatos, as propostas, um estadista.

O s brasileiros não têm visto nos debates ou nas entrevistas de que participam os presidenciáveis da próxima eleição algum candidato que tenha propostas com grandeza tal que se possam dizer de Estado.

Todos mais ou menos respondem questões pontuais voltados a agradar o eleitorado. Não é fácil escapar disso, pois, se o político não alcançar as expectativas das pessoas e não o fizer com compreensibilidade, não recebe votos.

Nas diversas sabatinas, prevalece o apelo popular fundado em generalizações repetidas em programas de eleições passadas, sabidamente listadas por estarem nas relações de preocupação da população.

De toda forma, se algumas diretrizes não têm importância alguma, fazendo-se meramente apelativas, outras merecem ser destacadas por sua importância. Sem o cumprimento de algumas delas, aliás, o Brasil empaca.

Álvaro Dias: generalidades desprovidas. Afirmar corte linear de 10% em todas as despesas do governo federal é uma temeridade. Há despesas redutíveis, sabidamente há desperdícios, mas há outras que solicitam aumento.

Também, referir a redução em 60% do número de assaltos e homicídios no País soa eleiçoeiro. Já a previsão de reforma tributária e da previdência são correspondentes às responsabilidades de quem pretende ocupar a Presidência.

Ciro Gomes: a promessa de “tirar o seu nome do SPC” me soa pândega. As propostas que preveem um papel indutor do Estado no desenvolvimento econômico parecem-me boas, desde que não privilegie relações de interesse.

Cabo Daciolo:  Aumentar gastos em educação e melhora de problemas de saúde e de violência urbana por meio da prevenção. Generalidade para qualquer programa; não faz sentido sem demonstração de meios.

Geraldo Alckmin: Foca economia e segurança pública, o que está muito bem, mas não especifica ações, o que resta mal. Promete ampliar o combate à corrupção, medida que está conforme a solicitação do Brasil mais honesto.

Guilherme Boulos: recuperar contas públicas com ampliação de impostos dos mais ricos; ótimo. Aumentar impostos da indústria e da agropecuária; parece ruim. Reduzir imposto sobre consumo; generalizado, bem ruim.

Sua pretensão de aprovar em consultas, plebiscitos e referendos propostas suas que não passem pelo crivo do Congresso chama-se bonapartismo. É a fala do governante diretamente com as massas. Isso sobra em autoritarismo.

Henrique Meirelles: defende reformas necessárias, o que é corajoso, pois sabe que esses assuntos podem significar perda de votos. A expressão programática de criação de empregos com oportunidades para jovens é generalidade.

Jair Bolsonaro: ajuste liberal na economia, redução do Estado, venda de ativos da Petrobras. Inúmeros países são exemplo da pertinência de tais medidas, mas há uma condição sem a qual a opção seria um fracasso.

Precisaríamos contar com capitalistas dispostos a investir.  A nossa tradição, à direita é à esquerda, contudo, é de investimento lastreado em empréstimo de dinheiro público. Disso adveio muito da corrupção petista.

Promete a continuidade de programas sociais; seus pronunciamentos, todavia, não demonstram simpatia por nada relacionado à ideia de social. As referências que faz à contenção de violência urbana são polêmicas.

João Amôedo: pretende um Estado enxuto. Fala em mexer no sistema político, mas, em tese. Não especifica medidas. A defesa de maior inserção do Brasil na economia mundial, igualmente, carece de detalhes.

João Goulart Filho: dobrar o valor real do salário mínimo até o fim do seu governo e reduzir taxa de juros são afirmações genéricas. Já, interessante a sua preocupação com investimento em fontes renováveis de energia.

José Maria Eymael: refere genericamente a diminuição da carga tributária bem como garante que fará o Sistema Único de Saúde funcionar. Vale, contudo, o ter trazido a debate a universalização do acesso ao esporte amador.

Luiz Inácio Lula da Silva: está, parece, imolando o PT por sua própria figura. Mudando o candidato, contudo, permanece o programa. Promete alteração no Poder Judiciário. Assunto importante; o motivo petista, todavia, é revanche.

Reforma política com participação popular: afirmação de valor simbólico, mas há o risco de justificar tentações bonapartistas. É coerente o compromisso de superação da pobreza e da educação como prioridade estratégica.

Marina Silva: Claramente defende reforma política, tributária e previdenciária. Atitude elogiável. Quer o Banco Central autônomo, mas não ousa propor independência institucionalizada, então, não vale.

Vera Lúcia: oferece generalidades. Obras públicas gerarão emprego e resolverão problemas estruturais. Aumentará salários e aposentadorias. A reforma trabalhista será revogada. Afirmações simpáticas e sem lastro.

Nenhum programa está suficiente, mas a maioria contém matérias relevantes. Sou grato aos candidatos por estarem lá. Alguns têm capacidade de governar. Estadista é mais que governante. Que vença quem saiba sê-lo.

Dada a nossa esquerda, assusta a nossa direita

Estamos concordes sobre desapreciarmos o político Jair Bolsonaro. Exatamente, não. Melhor seria dizer: Alguns estamos de acordo sobre não gostarmos do político Jair Bolsonaro. É que muita gente é fascinada pelo Capitão.

Bolsonaro reduz a seus termos simplistas a complexidade política, econômica e social em que o Brasil se encontra, manipulando um esquema discursivo alicerçado em receitas prontas para acudir todos os males da Nação.

Sua modalidade discursiva não explicita meios de aviar propostas; oferece (má) forma sem conteúdo. Os temas que elege para fundar suas falas, todavia, correspondem àqueles que assolam o cotidiano de boa parte da população.

Intelectualmente, Bolsonaro é reducionista: decompõe os intrincados acontecimentos da nossa vida em comum, tomando as partes pelo todo, dando-lhes mais importância do que ao fenômeno em sua completa abrangência.

Sucede que as falas de Bolsonaro encontram eco forte na Sociedade brasileira. Não aconteceria um Bolsonaro na crista dos lugares de fala da Nação se não houvesse quem o escutasse, referendasse e desse repercussão.

Em momento antipolítico, quem se configura como político atípico torna-se estuário dos desafogos contra os modos das nossas figuras públicas. O feitio mais político de nossos políticos é o escapismo: não entrar em bola dividida.

A nossa tradição eleitoral recomenda que o candidato não assuma posição em temas polêmicos. Desta maneira escorregadia de ser não se pode acusar Bolsonaro. Seus reducionismos não soam demagógicos. Ele parece sincero.

Nas exatas palavras de seu marquetólogo, “o Bolsonaro já foi assimilado pelo povo brasileiro. Cada vez mais, as pessoas compreendem que ele é verdadeiro, fala o que pensa e não mede palavras” (L. Salles, Veja, 01ago18).

A Veja adverte que Bolsonaro “cresce e assusta. A ameaça é real. Bolsonaro cresce no voto espontâneo, e surge um desafio: como lidar com um candidato que é um retrocesso no social e uma incógnita na economia”.

Ainda: “Sem apoio de partidos, dinheiro nem tempo de TV, Bolsonaro cresce nas pesquisas e demonstra ter musculatura para ser competitivo no segundo turno” (A. C. Costa). Sem intermediação institucional. Isso é inquietante.

Temos na História dois políticos que se elegeram sem dependência de partidos: Jânio Quadros e Fernando Collor. Ambos se puseram, ou foram postos, em rota de colisão com o Congresso. Não conseguiram governabilidade.

Retomo a Veja (8ago18): “A fadiga da democracia. “Os regimes livres não morrem mais a golpes de bazuca. O ataque é insidioso e tanto mais eficiente em países polarizados e em crise política e econômica – como o Brasil”.

Bolsonaro: ao contrário dos vaticínios, o candidato […] demonstrou ter trunfos na manga para sobreviver aos debates com adversários” (R. Paduan e E. Ghirotto).  Esnobado por partidos, bem posicionado no cenário eleitoral.

Revista Exame, janeiro de 2018: “Lá vem o Messias. Uma incógnita do ponto de vista econômico e defensor do indefensável. Num cenário de polarização política, Bolsonaro ocupou o posto de principal opção contra a esquerda”.

Por malfeitos, boa parte da esquerda está na cadeia. De esquerda, centro ou direita, a classe política está desacreditada. Lamento a conduta da esquerda no governo, porque, afinal, da deplorável direita jamais esperei nada.

Nesse clima árido aos políticos, arremedou-se o salvador: “Incisivo, Bolsonaro reflete o anseio popular, representando uma maioria que já não suporta a canalhice e a baboseira da política tradicional” (G. Bebianno, FSP, 21jan18).

Patifaria não tem lado. Após a Folha mostrar que Bolsonaro e seus filhos multiplicaram patrimônio na política, “Em redes sociais, presidenciável e seus familiares afirmam que há um complô entre adversários e imprensa.

Bolsonaro diz estar em curso ‘a maior campanha de assassinato de reputação’ da história recente, protagonizada pela grande mídia, e cobra foco em seus concorrentes” (R. Bragon, C. Mattoso e I. Nogueira, FSP, 09jan18).

A Istoé ironiza: “O manual petista de Bolsonaro. Jair Bolsonaro segue a mesma toada de Lula, na prática de ilegalidades e nos discursos de vitimização […] Flagrado em malfeitos, se disse alvo de perseguição” (A. Filgueira,17jan18).

Dada a trajetória do candidato, isso choca. “O espantoso é que uma parcela de seus seguidores ignore qualquer questionamento em nome da manutenção da mitologia em torno do ‘escolhido’” (V. Magalhães, Estadão, 14jan18).

Não obstante L. H. Mencken ter advertido que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, clara e errada”, muitos eleitores desprezam os elementos necessários ao encaminhamento do Brasil.

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